Ferir os pés no caminho...

Vaticano e o Mundo

Ferir os pés no caminho…

1. Remexo-me desconfortavelmente no sofá, continuando a olhar fixamente para a televisão. George Pell. O nome não me diz nada, monólogo eu. Cardeal. Australiano. Um mundo, uma realidade de que conheço muito pouco.

E depois o choque: pela primeira vez, um alto dignitário da Igreja é condenado e detido.

Vejo o prelado de cabeça baixa, no meio dos jornalistas, barulhentos e ansiosos por lhe extorquirem algumas palavras. O seu sofrimento interior só ele o poderá avaliar. Do sofrimento das suas vítimas inocentes, só cada uma delas poderá igualmente descrever o calvário.

E, como brusca contraposição, pela minha mente perpassaram imagens de tantos sacerdotes que marcaram positivamente a minha formação como criança, como adolescente e como jovem universitário. Gente de bem, em todos e cada um encontrei sucessivamente a abertura para a espiritualidade. A informação lúcida perante as dificuldades do caminho a seguir. E, já na Faculdade, neles identifiquei os protagonistas do debate riquíssimo sobre a Igreja, a Sociedade e o Homem, por ocasião do encerramento do Concílio Vaticano II.

Todos esses homens da Igreja, pessoas boas e generosas que cruzaram a minha vida, eram gente comum, heróis só talvez das suas batalhas interiores, como qualquer ser humano. Mas eram pessoas inseridas completamente no seu e nosso mundo, de modo normal, isto é, conforme ao seu múnus de sacerdotes, naqueles tempos e naqueles lugares.

2. No plano da minha formação religiosa, mas também intelectual, o que me deram eles que me tenha ficado como alicerces para a construção do adulto em que me tornaria? Vem-me de súbito à mente a figura singularíssima do Senhor D. Manuel Vieira Pinto (o padre Manuel, muito simplesmente), que viria a ser uma figura carismática da Igreja de Moçambique, como bispo de Nampula.

Do seu testemunho extraordinário, no contexto do “Movimento Por Um Mundo Melhor”, colheria eu a lição de como o sobrenatural se pode inscrever no quotidiano o mais anódino, se ousarmos abrir-lhe a porta. Nem que seja ao de leve…

A Doutrina Social da Igreja, por outro lado, constituiria uma orientação decisiva para as minhas futuras opções políticas, onde a referência democrata-cristã se foi consolidando, por oposição à tentação (para muitos) dos extremos.

O sentido social da propriedade privada e da empresa, os direitos dos trabalhadores, a dignidade da mulher, a crítica global de sistemas económicos desrespeitadores da Pessoa Humana, tudo isso se inscreveu, em mim, não apenas através da leitura, mas do debate com sacerdotes esclarecidos.

Se aos Pontífices de toda a minha vida consciente, desde Pio XII, devo referências simbólicas (mesmo afectivas) fortes, aos três Papas mais recentes, João Paulo II, Bento XVI e Francisco devo a extrema coragem e lucidez de nos proporem uma leitura do nosso tempo segundo os Evangelhos. E de nos guiarem com o seu exemplo.

3. A nossa Igreja vive momentos difíceis, é verdade. Poderá ela continuar a levar a cabo a sua missão insubstituível? Não tenho qualquer dúvida. A Igreja, mesmo com os pés feridos, caminha. Foi esse o sentido que quis dar a este texto. E essa é não só a esperança, mas a certeza de milhões de pessoas, em todo o mundo. E, para desprazer de muitos, a Igreja está e estará em todos os combates pela dignidade humana. Mas são muito grandes os desafios hoje, não só para a Igreja, mas para o mundo.

Continuando a reflectir, procuro uma imagem unificadora do nosso planeta e só encontro paisagens fragmentadas, compostas dos nossos infindáveis conflitos.

São as ambições que se chocam entre poderes mundiais. São nacionalismos feridos no passado e que agora sentem ter chegado a sua hora de dignidade e de afirmação.

São recentes hegemonias que se vêem ameaçadas nas suas posições de domínio, julgadas até aqui de direito divino. Aliás, a frequente introdução de invocações religiosas no actual discurso político, em países de tradição liberal democrática, não disfarça a vontade de algumas forças sociais de reatarem as suas relações com o sobrenatural… à sua maneira.

Noutro registo, imperam as diversas formas de luta pelo que muitos designam como emancipação do homem de valores caducos, de ética antiga, julgada discriminatória. E isto para além do velhíssimo combate pela erradicação de preconceitos multisseculares, desde o racismo a todos os outros “ismos”.

Perante a degradação da política, quer do discurso, quer da prática, em nações consideradas até há pouco como faróis do desenvolvimento humano e social, uma nova luta surge, impõe-se mesmo, urgente e desesperada: a da reabilitação do sentido de Dever e de Serviço, em prol da comunidade, transpondo a mentalidade tornada dominante, de auto-engrandecimento e afirmação pessoal que muitos puseram no lugar dos valores.

E sociedades sem valores, sabe-se, estão condenadas a morrer.

4. Mas, depois, reparo melhor e o que observo constitui um traço comum a todas as comunidades humanas: esse mesmo desejo de felicidade individual e colectiva que irmana homens e mulheres de todas as raças e culturas, de todos os idiomas e dialectos, de todas as latitudes e longitudes.

Para além do modo de nos vestirmos, de nos saudarmos, de comermos, de organizarmos o nosso espaço privado, de trabalharmos, de rezarmos, de educarmos os filhos – algo nos irmana e é fundamental: o desejo de nos realizarmos como seres humanos e de sermos felizes.

Não importa o modo como respondemos, diferentemente, a esse apelo, mas ele existe no coração de cada um de nós.

Os princípios fundamentais desse objectivo universal comum estão plasmados na recente Declaração de Abu Dhabi sobre a Fraternidade Humana, de que foi co-signatário o Papa Francisco.

Mas é também o Santo Padre que sabe serem as falhas humanas tão universais como o desejo de felicidade. O seu discurso de encerramento do Sínodo sobre a Protecção de Menores é uma notável lição sobre a persistência de um mal de todos os tempos e lugares, o abuso sexual de crianças e adolescentes que, como disse, não desculpa nunca aqueles que, dentro da Igreja, abusam da sua posição de poder, mas coloca o problema no seu contexto mais lato. O das diferentes culturas e civilizações. E, no tempo actual, o que ocorre em variadíssimas instituições da sociedade, muito mais resguardadas pelo olhar falsamente pudico de tantos.

5. A uma sociedade hiperinformada e por isso hipercrítica tem que corresponder a total transparência. Só ela pode robustecer a fidelidade dos crentes, mas antes de tudo a da Igreja em si própria.

E com mais este grande desafio transposto, dos tantos que já conheceu na História, a Igreja continuará a caminhar. Mesmo com os pés feridos, mesmo com os pés em chagas, mas continuará….

Carlos Frota

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