A minha geração, aquela que nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial, para já não falar dos poucos ainda sobreviventes que nos antecederam, tem assistido a transformações científicas, económicas, culturais e, sobretudo, sociais, que causam espanto e horror.
Se a curiosidade científica nos tem espantado, facilitado e também preocupado pelas suas perversões, muitas outras vertentes da vida das nossas sociedades ocidentais derraparam numa quase total ausência de valores humanos.
O mundo que, no pós-guerra e em consequência dela, tentou estimular a pacificação e o bem-estar económico dos antigos beligerantes, criando organizações para a regularização dos seus diferendos e fortalecendo os princípios essenciais do respeito pela condição humana, tem vindo progressivamente a diluir as bases desse sistema cultural colectivo, de interesses comuns e de integridade moral de cada cidadão, à medida que impõe uma agenda de comportamentos que invertem a escala de valores humanísticos com mais de meio século de afirmação.
Não é suposto ignorar-se que a reconstrução das ditas sociedades ocidentais sofria de um mal endémico, que lhes impunha uma duração limitada, se não fosse convenientemente tratado. As suas riquezas económicas e a humanização que lhe estava associada dependia, a prazo, da ignorância e da pobreza de sociedades terceiras, fonte de grande parte das matérias primas e humanas, que alimentavam o sucesso das sociedades ocidentais.
Com a planetarização das economias e da informação, aliada à expansão do conhecimento, dos modelos sociais e consequentes valores das sociedades ocidentais, as populações dos países terceiros, vítimas dos seus poderes corrompidos e perante a miséria das suas populações e a visão mítica das sociedades abastadas, começam a colocar em causa a supremacia destas, tentando gerir de forma autónoma os seus recursos e as suas identidades culturais. Os séculos de presença ocidental nas suas regiões, na delimitação das suas fronteiras, com pesadas heranças nas suas divisões étnicas e religiosas, e a pressão exercida sobre os seus recursos naturais, por parte das antigas potências coloniais, conduziu muitos desses povos à revolta contra a opressão e ao radicalismo extremo que, para nós ocidentais é uma barbárie intolerável, mas que, na sua essência, representa uma consequência da nossa incapacidade, intenção deliberada, má vontade ou indiferença, em transmitir-lhes eficazmente os nossos valores. Ao invés, transmitimos-lhes os nossos interesses económicos e agora exigem-nos o reembolso.
De uma forma geral, com a supremacia do interesse económico dos países ocidentais nessas regiões, sobre a humanização das suas populações, que se encontram numa situação de extrema pobreza, e considerando as grandes alterações da geopolítica internacional, às quais não são estranhos os interesses económicos e estratégicos da proliferação de armas, os conflitos regionais atingiram uma proporção nunca vista, aumentando a desgraça dessas populações, que agora batem desesperadamente à nossa porta, solicitando ajuda.
Para falar apenas destes, que fazem os países “ricos” da União Europeia perante as centenas de milhares de refugiados homens, mulheres e crianças que, desde os anos 80 e vindos das mais longínquas paragens (Argélia, Chade, Egipto, Etiópia, Eritreia, Iraque, Líbia, Mali, Mauritânia, Marrocos, Niger, Somália, Senegal, Síria, Sudão, Tunísia, entre outros), fugindo das guerras, dos extremistas, de regimes ditatoriais e da fome, arriscam afogar-se no Mediterrâneo, até alcançarem os centros de detenção na Itália, na Espanha ou na Grécia?
Estes, os que os recebem e tentam salvar-lhes as vidas, ficam inteiramente responsáveis por eles. Os outros, como a Grã-Bretanha ou a Alemanha, consideram que apoiar as operações de resgate é atrair mais refugiados para a Europa. Melhor dizendo: deixai-los afogar!
Como se a vigilância e segurança das fronteiras externas da UE não fossem responsabilidade de todos e os princípios que sempre adoptámos de preservação da vida humana nada valessem, perante uns eventuais votos perdidos para os partidos xenófobos anti-emigração, como consequência de termos perdido a defesa pública desses ideais, a Europa “chuta” para o lado. Umas “lágrimas de crocodilo” perante as muitas centenas de mortos e algumas medidas de protecção… da Europa.
Se as limitações da UE não permitem integrar esses refugiados, há que agir contra os traficantes de seres humanos ou criando condições para que essas populações possam viver condignamente nos seus países, investindo no seu desenvolvimento.
São Estados soberanos, não podemos intervir, dizem alguns! Essa agora!? Não intervimos no Iraque, na Síria, na Líbia, no Afeganistão, entre outros, em nome dos “nossos valores”!?
Luis Barreira