Salgari e os seus heróis portugueses

Sandokan e o amigo Eanes

Portugal continua, teimosamente, a negar os seus heróis, que tem de monta, optando por glorificar e dar a conhecer heróis alheios. Deve ser um dos poucos países onde isso acontece. Enfim, um sintoma mais desta nossa inexplicável tendência para o suicídio identitário.

A julgar pelos resultados da votação preliminar do concurso televisivo “Os Grandes Portugueses”, ocorrido aqui há uns anos, talvez se pudesse concluir que o terreno fosse propício ao lançamento de uma nova semente, pois entre os 100 portugueses mais distintos de sempre foram eleitos dois dos nossos maiores aventureiros: o jesuíta António Andrade, o primeiro ocidental a pisar solo tibetano, ocupando o honroso posto 59; e o bem mais popularizado Fernão Mendes Pinto, no lugar 88. Nada mau. Contudo, não passou de fogo-de-vista, apenas um concurso mais, e logo no fim-de-semana seguinte voltaram a dominar as atenções os únicos heróis dos actuais lusitanos: os jogadores de futebol e os clubes que representam.

Tempos houve em que alguns dos nossos escritores beliscaram o assunto literatura de aventuras, mas sempre em torno de bem conhecidas figuras históricas dos Descobrimentos, ficcionando um pouco, aqui e acolá. Foi o caso de Mário Domingues e de Elaine Sanceau. Na verdade, apesar da abundante matéria disponível, nunca fizemos escola com esse tipo de literatura. E quando não há em casa aquilo que se anseia, procura-se, adopta-se e acarinha-se o que vem de fora. Ou seja, os clássicos da literatura francesa e anglo-saxónica, como Daniel Defoe, Louis Stevenson e Júlio Verne, que periodicamente vêem os seus livros serem reeditados com atractivas e coloridas capas.

Embora tivesse sido ávido leitor de todos eles, nenhum marcou tanto a minha adolescência como o profícuo escritor italiano Emílio Salgari, autor de “Sandokan, o Tigre da Malásia”.

Já agora, talvez não fosse despropositado reeditar todas as suas obras já publicadas em Português e trazer a lume todas as outras que inexplicavelmente ficaram por traduzir. E isto, pelo simples facto de muitos dos heróis retratados nos livros de Emílio Salgari serem de estirpe portuguesa. O mais famoso de todos é “Yanes (Eanes) de Gomera”, ou melhor “Gastão de Sequeira” (assim designado na edição portuguesa), o irmão branco de Sandokan, mas muitos outros (ilustres desconhecidos em Portugal) foram imortalizados pela pena desse transalpino que aos vinte e um anos começou a escrever os seus contos em folhetins nas páginas de jornais de Verona e Milão.

De 1883 a 1911, ano da sua morte, Emílio Salgari produziu oitenta e sete romances e várias dezenas de contos. Mas não pensem que o italiano era trota mundos. Não, não era. Em toda a sua vida efectuou apenas uma viagem no Mar Adriático, quando frequentava um curso de marinha e que nunca lhe serviria de nada. Tão-pouco a vastidão da sua obra lhe proporcionou desafogo económico, já para não falar da ausência de reconhecimento público na época em que viveu. Os críticos nunca deram atenção ao seu trabalho, considerando-o um escritor menor. Opiniões à parte, o certo é que as obras do veronês integram o currículo das escolas italianas e são hoje mais lidas que as de Dante.

Emílio Salgari encontra-se entre os quarenta autores italianos mais traduzidos de sempre.

Filho de modestos comerciantes, casado com uma camponesa, pai de quatro filhos, e, sobretudo, vítima de sucessivos editores que o exploraram ao longo da sua carreira, Salgari passou por sucessivas privações que o levariam ao suicídio, por harakiri, em Turim, a 25 de Abril de 1911, faz amanhã 104 anos.

As “Maravilhas do Ano 2000”, escrito noventa anos antes da mudança do milénio – obra que podemos incluir no género ficção científica – fez sonhar gerações inteiras e é um dos seus livros mais interessantes. Entre as antevisões de Salgari, está a transmissão das notícias através da televisão. Em jeito de curiosidade, recorde-se que a narrativa de “Maravilhas do Ano 2000” termina em Lisboa, local onde as suas personagens são hospitalizadas por não aguentarem o ambiente eléctrico que as rodeava! Na altura em que o livro foi escrito, a electricidade dava os primeiros passos e as pessoas associavam essa nova forma de energia a algo de funesto.

A descrição que Salgari faz de “Gastão de Sequeira” – muitos dos leitores certamente se lembram de o ver encarnado no ecrã pelo actor francês Philippe Leroy – desmistifica o cliché que habitualmente se tem dos portugueses. Escreve Salgari que Sequeira é «um europeu de estatura igualmente alta, de feições correctas, aristocráticas, de olhos azuis e doces, e um bigode negro que começava já branquear, ainda que parecesse mais jovem que o outro [Sandokan]».

No livro “Os Tigres de Mopracem”, de 1883, Sequeira é apresentado como uma pessoa «ágil como uma enguia. Alegre como podia ser um marinheiro que navega no luxo, atascado em ouro e com um misto de altivez e cortesia que o davam a conhecer à primeira vista como um fidalgo». Ele era, na imaginação de Salgari «um nobre português das Celebes, um daqueles homens que emigrando haviam centuplicado o património, e que depois tinham tido a coragem de velejar num pequeno parau, comerciando entre as ilhas da Malásia».

Gastão de Sequeira representa o típico homiziado, português por conta própria que se enquadra perfeitamente com os restantes heróis de Salgari, proscritos, fora-da-lei ou bárbaros perseguidos pela avidez de colonizadores “civilizados”, denunciando o fundo libertário da visão salgariana de um mundo então eurocêntrico, racista e imperialista.

Joaquim Magalhães de Castro

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