O especialista da Trindade
Bispo, padre e doutor da Igreja, porque também autor, Santo Hilário nasceu em Poitiers, por volta do ano 310, na província romana da Gália Narbonense. Terá morrido em 367, com cerca de 56 ou 57 anos de idade, na mesma cidade.
Nasceu no seio de uma família ilustre, pagã, sem qualquer influência cristã. O próprio santo o revela, quando alude à sua educação idólatra. Recebeu, porém, uma boa educação, na qual se inclui a língua grega e, claro, a latinidade. Cresceu num ambiente romano, casou-se e praticamente nada mais se sabe da sua vida anterior à eleição como bispo da cidade natal. O que se sabe deriva de um outro pormenor que o santo desvenda nas suas obras teológicas, que o tornariam uma figura influente e determinante no Cristianismo do seu tempo. Com efeito, os estudos fizeram deste santo pictaviense um defensor da teologia trinitária ortodoxa durante um dos períodos mais difíceis da História da Igreja. Os biógrafos nomeiam-no como protector da Igreja, grande defensor da humanidade sagrada de Jesus, além de ter aplacado o Arianismo, doutrina (considerada herética) que negava a colocação de Cristo dentro da Trindade.
Cidadão gentil e cortês, revelam os seus estudos, dedicou-se a escrever algumas das maiores teologias sobre a Trindade, tendo participado em controvérsias, mas sempre do lado da Igreja e afirmando um ideal de preclara avisada santidade que se destacou no seu tempo.
Hilário, na sua obscura fase de conversão, a partir da sua educação clássica, estudou rigorosamente a filosofia grega e, a partir daí, também aquilo que era então a Bíblia. Como muitos outros Padres da Igreja primitiva, Hilário aceitou a verdade da Bíblia, reconhecendo a sua compatibilidade com a Filosofia e as Ciências. No entanto, a conversão foi um processo gradual para ele, pois só em 345 – altura em que já estava casado e tinha uma filha – é que Hilário se comprometeu a ser membro de pleno direito da Igreja, recebendo o baptismo com o resto da família. A ascensão dentro da Igreja, contudo, não foi nada gradual, mas sim rápida: por volta de 353, na forma de eleição episcopal então em uso, o povo de Poitiers elegeu-o para que fosse nomeado bispo da cristandade da cidade. E assim foi!
Pela sua natureza, o cargo era de grande responsabilidade, exigindo um sacrifício pessoal significativo. Embora a Igreja primitiva permitisse que alguns homens casados se tornassem bispos, os mesmos eram tradicionalmente obrigados a praticar o celibato dentro do casamento, sendo que muitos terão adoptado um estilo de vida radicalmente simplificado, semelhante ao monaquismo. Há indícios de que Hilário seguiu esse caminho ascético, uma vez ordenado.
Fosse qual fosse a opção de vida como prelado pictaviense, não deslustrou e atingiu um nível de excelência teológica e de espiritualidade que o mantêm ainda hoje como um autor fundamental. Assim, a eleição como bispo de Poitiers coincidiu com a segunda vaga da primeira grande controvérsia doutrinária – dita Ariana – da Igreja, na qual ele desempenharia um papel significativo. Embora o Concílio de Nicéia, em 325, tenha confirmado a rejeição da Igreja ao Arianismo – que afirmava que Jesus era apenas humano, não divino –, forças poderosas dentro da Igreja e do império não deixaram de apoiar e seguir a heresia. Que ganhou adeptos entre os bispos da Gália, quase isolando Hilário, que se manteve firme. Saturnino, bispo de Arles, o mais activo dos bispos gauleses pró-arianos – foi acusado como herege por Hilário –, convocou e presidiu a um Concílio em Béziers, no Sul de França, no ano 356, com a intenção de justificar e até impor a sua falsa doutrina.
Os bispos apelaram então ao Imperador Constâncio II, que favoreceu uma versão modificada do Arianismo e declarou o exílio de Hilário da Gália. Constâncio II não suspeitava, provavelmente, que ao banir Hilário para a Frígia inspiraria o bispo a montar uma defesa ainda maior da ortodoxia. Ali, na actual Turquia ocidental, Hilário escreveu a sua obra mais importante, “Sobre a Trindade”, na qual evidencia o estribo e testemunho consistentes da Bíblia sobre o mistério central da fé cristã. Apesar da sua tenaz oposição, Hilário foi sempre construtivo na crítica, tolerante e caridoso, catequético e pedagógico até com os “hereges”.
Hilário chegou a viajar para Constantinopla durante o seu exílio, para explicar aos bispos da cidade a razão da não ortodoxia do Imperador. Após a morte de Constâncio II em 361, Hilário pôde regressar à diocese de Poitiers. Pôde ainda assistir em vida à condenação do Arianismo na sua diocese e em grande parte da Igreja.
Hilário foi também decisivo fora da Diocese na luta contra a heresia ariana. Por exemplo, denunciou Auxêncio (355 – 374), o bispo ariano de Milão. A oposição subsequente a Auxêncio levou à sua sucessão por Santo Ambrósio de Milão (primeiro arcebispo desta cidade, entre 374 e 397), que, por sua vez, influenciaria grandemente a conversão de Santo Agostinho.
Santo Hilário morreria em Poitiers, em 367, depois de ter transmitido os seus ensinamentos e modo de vida a vários discípulos, entre eles uma outra grande figura do Cristianismo: São Martinho de Tours.
Hilário, desde sempre considerado um santo, seria também declarado doutor da Igreja por Pio IX, em 1851, embora Santo Agostinho já o tenha considerado como tal pouco depois da sua morte.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa