No encalço dos falsos intelectuais
Analisámos as duas ameaças internas à Fé durante os primeiros dois séculos do Cristianismo: o Gnosticismo e o Montanismo. O Gnosticismo foi abordado por Santo Irineu, bispo de Lyon, na Gália (actual França).
Irineu (ou Ireneu) nasceu por volta de meados do Século II d.C., provavelmente em Esmirna (agora chamada de “Izmir”, na Turquia), onde foi aluno de São Policarpo de Esmirna (ver PAIS DA IGREJA 5). Lembramos que São Policarpo foi discípulo de São João Apóstolo. Mais tarde, Irineu mudou-se para Lyon, onde se tornou bispo.
Na Audiência Geral de 28 Março de 2007, o Papa Bento XVI afirmou: “Ireneu é antes de tudo um homem de fé e Pastor. Do bom Pastor tem o sentido da medida, a riqueza da doutrina, o fervor missionário. Como escritor, busca uma dupla finalidade: [1] defender a verdadeira doutrina contra os ataques heréticos, e [2] expor com clareza a verdade da fé. Correspondem exactamente a estas finalidades as duas obras que dele permanecem: os cinco livros ‘Contra as Heresias’, e a ‘Exposição da pregação apostólica’ (que se pode também chamar de mais antigo ‘catecismo da doutrina cristã’)”.
(1) A “Detecção e Destruição do Falso Conhecimento” (do Grego antigo: Ἔλεγχος καὶ ἀνατροπὴ τῆς ψευδωνύμου γνώσεως, ou em Latim: Adversus Haereses – “Contra as Heresias”), consistia em cinco livros. Cada livro foi dividido em capítulos, cada capítulo dividido em parágrafos numerados. Os gnósticos afirmavam ter conhecimentos secretos acessíveis apenas a poucos. Irineu argumentou que estes falsos intelectuais não eram os verdadeiros professores da Fé. O verdadeiro ensino de Cristo vem através dos Apóstolos a quem o próprio Jesus ensinou. Os Apóstolos transmitiram-no aos seus sucessores, os bispos. Isto é o que chamamos de “Tradição Apostólica”.
Na mesma audiência, Bento XVI explicou que o ensinamento de Irineu acerca da Tradição Apostólica pode ser resumido em três pontos: (1.1) Pública, (1.2) Única e (1.3) Pneumática (guiada pelo Espírito Santo – do Grego “pneuma”, que significa “espírito”).
Segundo o Papa, A) a “Tradição apostólica é (1.1) ‘pública’, não privada ou secreta. Ireneu não duvida minimamente de que o conteúdo da fé transmitida pela Igreja é o que recebeu dos Apóstolos e de Jesus, do Filho de Deus. Não existe outro ensinamento além deste. Portanto quem quiser conhecer a verdadeira doutrina é suficiente que conheça ‘a Tradição que vem dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens’: tradição e fé que ‘chegaram até nós através da sucessão dos Bispos’ (Livro 3, Capítulo 3, parágrafo 3). Assim, sucessão dos Bispos, princípio pessoal; e Tradição apostólica, princípio doutrinal coincidem.
B) A Tradição apostólica é (1.2) ‘única’. De facto, enquanto o gnosticismo se subdivide em numerosas seitas, a Tradição da Igreja é única nos seus conteúdos fundamentais, a que como vimos Ireneu chama precisamente regula fidei ou veritatis: e isto porque é única, gera unidade através dos povos, através das culturas diversas, através dos povos diversos; é um conteúdo comum como a verdade, apesar da diversidade das línguas e das culturas. Há uma frase muito preciosa de Santo Ireneu no livro ‘Contra as Heresias’: ‘A Igreja, apesar de estar espalhada por todo o mundo, conserva com solicitude [a fé dos Apóstolos], como se habitasse numa só casa; ao mesmo tempo crê nestas verdades, como se tivesse uma só alma e um só coração; em plena sintonia com estas verdades proclama, ensina e transmite, como se tivesse uma só boca. As línguas do mundo são diversas, mas o poder da tradição é único e é o mesmo: as Igrejas fundadas nas Alemanhas não receberam nem transmitiram uma fé diversa, nem as que foram fundadas nas Espanhas ou entre os Celtas ou nas regiões orientais ou no Egipto ou na Líbia ou no centro do mundo’ (Livro 1, Capítulo 10, parágrafo 2). Já se vê neste momento, estamos no ano 200, a universalidade da Igreja, a sua catolicidade e a força unificadora da verdade, que une estas realidades tão diversas, da Alemanha à Espanha, à Itália, ao Egipto, à Líbia, na comum verdade que nos foi revelada por Cristo.
C) Por fim, a Tradição apostólica é como ele diz na língua grega na qual escreveu o seu livro, (1.3) ‘pneumática’, isto é, espiritual, guiada pelo Espírito Santo: em Grego espírito diz-se pneuma. De facto, não se trata de uma transmissão confiada à habilidade de homens mais ou menos doutos, mas ao Espírito de Deus, que garante a fidelidade da transmissão da fé. Esta é a ‘vida’ da Igreja, o que torna a Igreja sempre vigorosa e jovem, isto é, fecunda de numerosos carismas. Igreja e Espírito para Ireneu são inseparáveis: ‘Esta fé’, lemos ainda no terceiro livro ‘Contra as Heresias’, ‘recebemo-la da Igreja e conservámo-la: a fé, por obra do Espírito de Deus, como um depósito precioso guardado num vaso de valor rejuvenesce sempre e faz rejuvenescer também o vaso que a contém. Onde estiver a Igreja, ali está o Espírito de Deus; e onde estiver o Espírito de Deus, ali está a Igreja com todas as graças’ (Livro 3, Capítulo 24, parágrafo)”.
(2) “A ‘Exposição da pregação apostólica’ é composta de duas partes… [A] primeira parte (capítulos 4-42) trata do conteúdo essencial da fé cristã. As Três Pessoas Divinas, a Criação e Queda do Homem, a Encarnação e a Redenção são tratadas… O segundo (capítulos 42-97) apresenta provas da veracidade da revelação cristã a partir das profecias do Antigo Testamento e apresenta Jesus como o Filho de David e como o Messias” (Quasten, I, pág. 292).
Pe. José Mario Mandía
LEGENDA: Santo Irineu