Santa Maria, Mãe de Deus – 3

Ecce virgo concipiet et pariet filium!

Da última vez, vimos que o primeiro dogma que a Igreja declara de modo oficial acerca da Virgem Maria é a proclamação feita pelo Concílio de Éfeso, em 431, da maternidade (objectiva) de Deus: Maria é proclamada “Theotókos” ou Mãe de Deus e não “Christotókos”, ou seja mãe apenas da parte humana de Jesus Cristo. Esta declaração dogmática deriva directamente da chamada Querela Cristológica que indagava acerca da natureza da pessoa de Jesus Cristo, “Homem ou Deus?”.

A partir daqui os dogmas acerca de Maria tornar-se-ão algo mais independentes de considerações de natureza cristológica, mas ainda assim não totalmente autónomos destas, visto que toda e qualquer dignidade que a Virgem Santa Maria possa ter deriva necessariamente do facto de ser mãe da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

 

EIS QUE UMA VIRGEM CONCEBERÁ E DARÁ À LUZ UM FILHO

Apesar de ter sido o primeiro dogma oficialmente proclamado pela Igreja, a maternidade de Deus (θεοτόκος) não é o primeiro dogma que a Igreja tem acerca da Virgem Maria. Na verdade, a primeira e mais básica, por assim dizer, verdade dogmática acerca de Maria é a Concepção Virginal de Jesus Cristo.

O dogma da Virgindade de Maria não só precede no plano lógico (embora não no ontológico) o de Maria Theotókos, como também dele está dependente a própria natureza divina de Cristo como verdadeiro Filho de Deus. A Concepção Virginal de Jesus Cristo pressupõe a intervenção de Deus, através do Espírito Santo, como agente activo no próprio acto da concepção (“animatio”) de Jesus. Esta verdade é de tal modo basilar e condicionante que vem inscrita no Credo, a declaração mais básica da fé da Igreja: “Conceptus est de Spititu Sancto, natus ex Maria Virgine” (Foi concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem Maria).

A justificação bíblica para este dogma encontra-se no evangelho de São Lucas (1:26-27) «o anjo Gabriel foi enviado a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem prometida a um homem de seu nome José, da casa de David; o nome da virgem era Maria», mais à frente no texto, é a própria Virgem Maria que se mostra intrigada com a possibilidade de vir a dar à luz um filho sendo ainda virgem mas o anjo dissipa as suas dúvidas ao explicar que o Espírito Santo será o progenitor da criança a nascer (Lc 1:34-36) «No entanto Maria disse ao anjo: “Como pode isto ser se eu não conheço homem?” Em resposta o anjo disse: “O Espírito Santo virá sobre ti, e a força do Altíssimo descerá sobre ti. Por isso mesmo o que de ti vier a nascer será Santo e chamar-se-á Filho de Deus”».

A Concepção Virginal de Jesus é de tal modo essencial à fé cristã que se encontra reflectida até mesmo em textos apócrifos do Século II, como sejam o proto-evangelho de São Tiago, as Odes de Salomão ou a Ascenção de Isaías.

Os primeiros oponentes deste dogma são, obviamente, os judeus que negam a natureza divina de Cristo e fazem-no considerando que a interpretação que Igreja faz das palavras do profeta Isaías (7:14) «o Senhor, Ele mesmo, dar-vos-á um sinal: eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho» é incorrecta. Esta passagem do Antigo Testamento é a outra fundamentação bíblica para este dogma; o nascimento virginal de Cristo faria já parte do cumprimento das promessas da Antiga Aliança. Na base desta crítica antiga dos judeus está o entendimento de que a palavra hebraica הָעַלְמָה /hā‘almâ/ que Isaías usa para virgem, e que a Septuaginta traduz como παρθένος, não quer dizer “virgem” mas sim “moça” ou “mulher jovem”. Esta questão foi tão debatida na antiguidade que as traduções gregas do Antigo Testamento de Aquilão, de Teodósio e de Símaco, agora perdidas, substituíram a palavra παρθένος /parthénos/ “jovem (solteira)” ou “donzela” por νεᾶνις /neãnis/ “mulher jovem, moça”. Mas a verdade é que a palavra hebraica עַלְמָה /‘almâ/ era usada para descrever uma jovem núbil (numa forma mais popular da nossa língua, uma jovem casadeira ou casadoira) ou seja uma mulher solteira em idade de casar, e na antiguidade, tanto clássica, como oriental, se considerava que uma mulher solteira seria necessariamente virgem.

A palavra usada para descrever Rebeca, a futura esposa de Isaque, quando esta aparece em cena pela primeira vez, em Génesis 24:16, é בְּתוּלָה /bətôlâ/ “rapariga”, mas esta palavra é seguida da frase «que homem ainda não conhecera». Já em Génesis 24:43, Rebeca é descrita como הָעַלְמָה “donzela, virgem”, a mesma palavra usada por Isaías, sem que haja necessidade de acrescentar nada mais para certificar o seu estado de virgindade.

De qualquer modo, no caso da profecia de Isaías, é o próprio contexto que sugere, e até exige, que a jovem seja virgem de facto, pois que teria de extraordinário este tal sinal, se não fosse o de uma virgem conceber e dar à luz um filho?, já que não-virgens concebem e dão à luz filhos todos os dias…

Também as palavras de São Mateus (1:18) «estando prometida a José, Maria, Sua mãe, antes que vivessem juntos, encontrou-se esta grávida pelo Espírito Santo», vincam, na mesma linha das de São Lucas, os dois pontos principais desta questão, a saber: o primeiro, que Maria ainda não vivia com São José quando se encontrou engravida, e o segundo, que a sua gravidez é em virtude da intervenção do Espírito Santo.

 

SEMPRE VIRGEM MARIA

Para além da Concepção Virginal de Maria, a Igreja fala também do Parto Virginal e da Virgindade Perpétua da Mãe de Deus.

A Virgindade de Maria pressupõe três elementos essenciais, nomeadamente: “virginitas mentis”, ou seja uma disposição permanente para a virgindade ou pureza, “virginitas sensus”, ou seja a liberdade de qualquer impulso sexual desordenado, e por fim, “virginitas corporis”, ou seja, a integridade física da Virgem Maria. Quando a Igreja fala da Concepção e Parto Virginais e da Virgindade Perpétua está-se a referir a “virginitas corporis”, ainda que esta pressuponha as outras duas.

Ao contrário da Concepção Virginal, que é aceite por todos os cristãos, como aliás não poderia deixar de ser sem que o próprio conceito de Cristo Filho de Deus fosse posto em causa, a Virgindade Permanente é contestada sobretudo pelos protestantes. Estes acreditam que a Virgem Maria, após dar à luz Jesus, passou a ser uma mulher normal como qualquer outra. Os protestantes não só negam a Virgindade Permanente de Maria, como também a sua Concepção(-passiva) Imaculada, a sua Assunção, assim como qualquer aspecto que vá mais além da mera instrumentalização de Maria como mãe de Jesus Cristo. Não negam, no entanto, o seu papel de “Theotókos”, pois isso implicaria a negação da união hypostática das duas naturezas de Cristo. Para muitos protestantes a Virgem Maria não é mais do que uma barriga de aluguer, por assim dizer, de que Deus faz uso quando precisa. Esta visão de Deus e da encarnação é altamente redutora. Como é que se pode conceber que, depois de ter sido escolhida de entre todas as mulheres que jamais viveram para dar à luz o Filho do Altíssimo, depois de ter sido responsável pela Humanidade de Jesus Cristo, e depois de trazer dentro de si o filho de Deus durante nove meses, Maria pudesse ser uma mulher como outra qualquer?

 

IRMÃOS DE JESUS?

A Virgindade Perpetua de Maria é muitas vezes contestada pelo facto de que nos evangelhos se faz referência aos “irmãos de Jesus”. Mas este facto é facilmente explicável se tivermos em conta que a palavra grega ἀδελφός /adelphós/ “irmão” traduz o hebraico אָח /’āḥ/, que num contexto de família-clã, refere-se não só a irmãos propriamente ditos, mas também a parentes próximos, como sejam primos em graus diversos, e até mesmo a pessoas que, não tendo relações de sangue, crescem juntas. Faz lembrar um pouco o uso que a palavra inglesa brother(s) tem muitas vezes nos Estados Unidos entre os membros da raça negra ou os muçulmanos.

Uma pista que o evangelho de São João (19:26-27) dá para o facto de que Maria não teve outros filhos para além do Senhor, é que aos pés da cruz, Jesus passa a São João, chamado o discípulo amado, a sua responsabilidade de olhar pela sua mãe. Se Jesus tivesse irmãos, após a sua morte, a responsabilidade de tomar conta da mãe passaria para um dos irmãos. Em nenhuma parte se sugere que São João e Jesus fossem parentes, e que a São João coubesse tal responsabilidade.

Já os gregos para explicar “os irmãos de Jesus” desenvolveram a ideia de que São José teria sido viúvo antes de desposar Maria e teria tido filhos do seu primeiro casamento, seriam esses os referidos como “irmãos de Jesus”. Esta teoria, no entanto, é totalmente ad hoc e não tem qualquer fundamento bíblico ou na tradição, é totalmente apócrifa (ainda que possível!).

No que diz respeito ao dogma da Virgindade Permanente de Maria, o quinto Sínodo de Constantinopla, em 553, atribuiu à Virgem Maria o título honorífico de ἀειπαρθένος /aeiparthénos/ “Sempre Virgem”. Este título é utilizado por São Leão Magno no Tomo a Flaviano, aprovado pelo Concílio de Calcedónia, e foi reafirmado no Sínodo de Latrão, em 649, concílio convocado primeiramente para rejeitar de uma vez por todas, pelo menos no Ocidente, o monoteletismo. Também Paulo IV declarou, em 1555, que a Virgem Maria manteve a sua integridade virginal “ante partum, scilicet, in partu et perpetuo post partum” (Antes e durante o parto, e após o parto para sempre).

 

O PARTO VIRGINAL

Os títulos de “Mater Inviolata”, ou “Virgo Intacta”, correspondem sobretudo à virgindade de Maria durante o parto. Esta questão comporta dois aspectos principais, o primeiro de carácter fisiológico, corresponde a uma visão antiga de que a perda da virgindade correspondia ao rompimento do hímen da mulher; o parto virginal de Jesus teria mantido a virgindade ou inviolabilidade fisiológica de Maria. Isto leva ao segundo aspecto relacionado com esta mesma crença, aspecto esse que encontra aceitação quase uníssona na Patrística, e que se refere a um suposto carácter miraculoso do nascimento de Cristo. Hoje em dia, embora o título de “Mater Inviolata” ou “Virgo Intacta” permaneçam em uso, esta doutrina é vista de forma diferente e sem fazer qualquer referência a questões de natureza fisiológica do parto, apenas confirma a continuidade da virgindade de Maria, antes, durante e depois do parto.

A “virginitas mentis” e a “virginitas sensus” da Virgem Maria derivam da sua Imaculada Conceição e delas resultam a total ausência de concupiscência e de pecado real.

Visto que a imunidade ao pecado original não encerra necessariamente a imunidade às consequenciais do mesmo, Maria, embora imaculada na sua concepção, tal como Jesus, estava também sujeita às imperfeições do género humano, tal como sejam a doença ou a morte. No entanto, também tal como Jesus, Maria estava liberta das imperfeições de natureza moral. Assim, tal como Jesus, estava liberta de todo e qualquer impulso ou desejo desordenado de natureza sexual. De facto, seria incompatível com a plenitude de graça que Maria gozava, com a sua pureza perfeita e o seu estado imaculado estar sujeita a desejos impuros. Este facto não diminui em nada o mérito da sua virgindade permanente, pois este não lhe advém da rejeição de tais impulsos mas sim do seu amor a Deus, especialmente na pessoa de Jesus Cristo, seu filho e carne da sua carne.

A segunda consequência da sua Imaculada Conceição é que Maria, tal como Cristo, estava também liberta de todo o pecado real, tanto mortal como venial. Tal é afirmado, ainda que de passagem, pelo Concílio de Trento quando diz que “nenhuma pessoa justificada pode evitar o pecado durante toda a sua vida, mesmo o pecado venial, a não ser por privilegio especial de Deus, tal como a Igreja defende que foi concedido à Virgem Santa (nisi ex speciali Dei privilegio, quemadmodum de beata Virgine tenet Ecclesia)”.

A modo de conclusão poderíamos dizer que a Concepção Virginal de Jesus é um elemento essencial da fé cristã uma vez que determina a filiação divina de Jesus e a Virgindade Permanente de Maria é a marca consequente do seu extraordinário estado de Graça necessário, e ao mesmo tempo derivado, da maternidade divina.

Roberto Ceolin 

Universidade de São José

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