Quinze anos depois do pedido de perdão de João Paulo II

Tempo de reconciliação

Quaresma é tempo de purificação. De reconciliação. E de salvação. Foi há precisamente 15 anos que João Paulo II teve um gesto inovador. No Grande Jubileu implorou o perdão para os pecados passados e presentes da Igreja.

«É forçoso reconhecer que a história regista também numerosos episódios que constituem um contra-testemunho para o cristianismo. […] Por causa daquele vínculo que nos une uns aos outros dentro do Corpo místico, todos nós, embora não tendo responsabilidade pessoal por isso e sem nos substituirmos ao juízo de Deus – o único que conhece os corações – carregamos o peso dos erros e culpas de quem nos precedeu», lia-se na Bula de Proclamação do Grande Jubileu do Ano 2000, “Incarnationis mysterium”.

Foi a 12 de Março, primeiro Domingo da Quaresma, que o Papa disse na homilia pelo Dia do Perdão do Ano Santo de 2000 ser a «ocasião propícia para que a Igreja, reunida espiritualmente à volta do Sucessor de Pedro, implore o perdão divino para as culpas de todos os crentes. Perdoemos e peçamos perdão!» Lembrava que este apelo tinha suscitado na comunidade eclesial uma profunda reflexão que levou à publicação de um documento da Comissão Teológica Internacional intitulado “Memória e reconciliação: a Igreja e as culpas do passado”. Na conclusão deste texto ficam, entre muitas outras, estas palavras: «“Reconhecer as quedas de ontem é acto de lealdade e coragem (Tma 33)”. O que abre para todos um novo amanhã».

Na homilia, o pontífice dizia: «Pedimos perdão pelas divisões que surgiram entre os cristãos, pelo uso da violência que alguns deles fizeram no serviço à verdade, e pelas atitudes de desconfiança e de hostilidade às vezes assumidas em relação aos seguidores de outras religiões».

Durante essa Liturgia, noutros momentos, cardeais e arcebispos pediam perdão para aspectos específicos. Muitos ficaram perplexos «pelo gesto inaudito do pedido de perdão histórico da Igreja», recorda Paulo Fontes, director e investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica. «A Igreja, como instituição que atravessa o tempo, procurou através desse gesto uma purificação da memória, para ter uma maior credibilidade do seu testemunho no presente – a Igreja reafirmou a sua própria perenidade ao longo dos tempos». Sendo a Igreja a mesma de ontem, de hoje e de sempre, assume o seu lugar na história da humanidade como a depositária da verdade que a transcende e que assenta na revelação de Deus aos homens: anunciar a pessoa de Jesus Cristo como caminho, verdade e vida. Em cada espaço. Em cada tempo. Em cada lugar. Em cada momento na história. «Este pedido de perdão é feito diante de Deus e da humanidade, para que a Igreja possa seguir com maior verdade o seu caminho na história. É uma necessidade para a Igreja credibilizar o seu próprio testemunho», sublinha.

Aura Miguel, vaticanista, considera haver «um antes e um depois do mea culpa» na Igreja. A jornalista da Renascença lembra-se bem da conferência de Imprensa onde foi apresentada esta iniciativa e da «estranheza que foi um Papa resolver fazer isso». No dia da celebração, conta que ficou «impressionada com a humildade» que viu em João Paulo II: «Ele olhava para Cristo crucificado de uma maneira… Escancarava-se diante d’Ele, carregando sobre si também a Igreja inteira. Isso impressionou-me muito, porque nós temos a tendência de olhar para as coisas de uma maneira, talvez, política ou de “toma lá, dá cá”… Houve uns que diziam que não viam ninguém das outras famílias cristãs ou religiosas fazerem igual, como se isto fosse um negócio. O Papa João Paulo II não estava à espera da contrapartida de ninguém. Aquilo não estava a ser feito para nós, estava a ser feito entre ele e Jesus. Ele vai mesmo pôr o dedo na ferida no corpo de Cristo e pede-lhe desculpa».

 

Igreja santa e pecadora

Aos olhos de Paulo Fontes, com este gesto, o Papa contribuiu para recolocar o lugar da Igreja na própria história, «significando que cada tempo é um tempo novo, oportunidade para acolher o que vem ao seu encontro e quebrar as cadeias históricas do ressentimento, permitindo novos futuros». Quinze anos depois, o investigador considera «estar mais apaziguada a relação da Igreja Católica com o seu tempo, permitindo-lhe sublinhar a promessa, que transporta e de que quer ser sinal, de uma nova humanidade a construir».

Se a Igreja pede perdão, reconhece que é santa e pecadora. Foi assim no passado e é também assim no presente. O director do Centro de Estudos de História Religiosa vê neste reconhecimento «uma atitude mais descomplexada na maneira de a Igreja se relacionar com os acontecimentos de cada tempo, estando mais atenta ao concreto da realidade e às exigências do Evangelho, vendo se está a realizar a sua missão da maneira mais adequada, procurando corrigir a rota e reformando-se, se necessário». Exemplo disso é o novo ambiente eclesial de que tanto se tem falado: «Podemos ver aqui uma linha de continuidade nas próprias reformas que o Papa Francisco tem procurado desenvolver na Cúria e na sua proposta de viver e proclamar a alegria do Evangelho». Bento XVI e a sua renúncia também «contribuíram para uma aparente dessacralização da função do papado mas, ao mesmo tempo, permitiu abrir espaço para que o serviço de Pedro, do bispo de Roma, seja vivido nessa procura de uma autenticidade querida pela Igreja», analisa.

Olhando para trás, também Aura Miguel concorda que «muitos dos posicionamentos de Bento XVI e do Papa Francisco vêm na sequência desta atitude de João Paulo II, que constituiu um marco».

 

«Onde abundou o pecado, superabundou a graça»

A Igreja é sempre marcada pelo selo do pecado e da santidade. Nunca será possível haver uma Igreja sem pecado – e o Papa Francisco lembra muitas vezes que todos somos pecadores. Porém, não é o pecado que define a Igreja. «A Igreja é feita de pessoas que têm defeitos. Jesus Cristo assentou a Igreja em Pedro – que era um grande pecador e faltou no momento da verdade – e não no Apóstolo João, que era o fiel. Mas o que define Pedro não é o pecado – é o amor que ele tem a Jesus, e isso salva. Isto ajuda-nos a perceber que o essencial da Igreja não é o pecado, mas o amor. É a diferença de Judas, que ficou tão centrado no pecado dele que desesperou».

«A Igreja», prossegue a vaticanista, «é feita por pessoas que pecam, que fazem asneiras, que são até motivo de escândalo mas, em última análise, há uma coisa maior que se chama graça e amor. Quem, com a sua liberdade, adere ao amor está e estará na Igreja».

Assumindo que é santa e pecadora, a Igreja tem um novo objectivo pela frente aos olhos do investigador Paulo Fontes: «O desafio para a Igreja é não criar novas roturas, novas feridas na sua relação com a realidade social, porque o papel da Igreja é ser um pouco como o bom samaritano, contribuindo para sarar as feridas dos homens e das mulheres de cada tempo. Daí a importância da humildade, de estar mais atenta, mais crítica sobre si mesma e mais disponível e dialogante para acolher a novidade vivida pelos homens e mulheres de cada tempo e de cada lugar, não numa posição fixista ou arcaizante, condenatória, exterior à própria realidade, mas, ao invés, para descobrir na realidade os sinais da presença salvífica de Deus, em suma, saber ler os sinais dos tempos».

Muito já se disse e se escreveu sobre esse pedido de perdão. Muito mais haverá ainda por analisar e escrever com outra distância temporal. A história o dirá lá mais para a frente. Mas uma certeza têm os fiéis: «Onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5,20)».

 Sílvia Júlio

In Família Cristã

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