Das coisas nascem coisas

Soluções para os Novos Aterros

A RAEM sofre de “obesidade”, doença que contamina e afecta a vida de todos os que aqui vivem, muito por culpa do rápido desenvolvimento das estruturas urbanas e dos novos aterros, e da constante ocupação e construção num território que outrora já foi “elegante”.

Durante pouco mais de cem anos podemos ver o quanto Macau “engordou”. Em 1912 tinha apenas 11,6 Km2 de extensão. Hoje, tendo em conta os trabalhos de alargamento e com os novos aterros em curso – já são bem visíveis o aterro da nova ponte Zhuhai-Macau-Hong Kong e a Zona A do Ante Projecto do Plano Director – Macau soma mais de 30 Km2 de extensão, de acordo com os últimos dados estatísticos fornecidos pela Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT).

Macau está sufocado para além do seu limite, precisando urgentemente de respirar e de uma intervenção por parte dos seus responsáveis, com soluções de arquitectura e planeamento urbano – visão e estratégia que contribua para a melhoria da qualidade de vida, no sentido de aliviar a densidade urbana, incorporando as tradições e cultura, dando resposta às necessidades da população e garantindo a identidade cultural da cidade.

O Ante Projecto do Plano Director das Novas Zonas Urbanas para Macau poderá trazer enormes benefícios à cidade, se for pensado como estratégia para aliviar o território, e não acrescentar e aumentar a sua densidade urbana. Caso contrário, o problema manter-se-á, sem que haja solução à vista. Ou seja, estas novas plataformas urbanas que estão em curso (algumas delas já concluídas, como é o caso da Zona B do novo Plano Director) deviam servir, sobretudo, para introduzir soluções às carências urbanas, nomeadamente: deslocando pequenas comunidades residentes de zonas degradadas da cidade, como é exemplo a Zona Norte; abrindo lugar a novas áreas verdes e de lazer; e reforçando a sua estratégia urbana através de uma melhor divisão das zonas de indústria, habitação e comércio, assim como das zonas mistas. Enfim, dar a Macau a oportunidade de se “reinventar” e “corrigir”!

A RAEM tem de continuamente repensar a cidade, num formato sustentável, tanto para o presente como para o futuro. Os novos aterros são certamente uma oportunidade de grande importância, que deve ser feita de forma cirúrgica.

Outra questão de que muito falam alguns arquitectos e académicos é a falta de uma maior relação do território com o mar, pois sendo Macau banhada em quase todo o seu perímetro não há a intenção de “casar” o território com o mar por parte de quem exerce a arquitectura. É algo que devia ser implementado em algumas zonas da cidade, para assim se obter um melhor aproveitamento e enriquecimento do espaço urbano.

Quando cheguei a Macau, em meados dos anos 80, a Baía da Praia Grande era um dos lugares mais belos da cidade e oferecia aos residentes uma interessante relação com o estuário e as águas do Delta do Rio das Pérolas.

Era sempre muito agradável o passeio e a vida própria da avenida ondulada pela baía, com algumas estruturas piscatórias de bambu “plantadas” no lodo com as suas redes enormes, que muitas vezes ali juntavam grupos de pessoas que paravam para as verem levantar e contemplar o peixe que luzia saltitante nas redes dos pescadores. Com um pouco de sorte, ao longe ainda se via passar um junco com a vela típica aberta ao céu, num velejar sereno. Lembro-me ainda de umas poucas rampas de acesso ao mar – algumas ainda hoje intactas – que serviam para os pequenos barcos descerem ou subirem das águas. Quem ali passava tinha a oportunidade de se aproximar da água. Ao longe vislumbrava-se a ilha da Taipa.

Hoje, grande parte desse encanto desapareceu e a baía deu lugar aos conhecidos lagos Nam Van. Os lagos, pela sua enorme presença, deviam ser englobados na estratégia de melhorar Macau e nas intenções de um plano urbano à escala da RAEM. Encontram-se, pois, num estado muito debilitado: a água e o fundo estão poluídos, o que não é convidativo nem aprazível ao contacto e à interacção da população. Isto é, faltam estruturas urbanas e arquitectónicas que tragam pessoas ao local e melhorem a circulação pedestre e a relação com os lagos. Exemplo disso é o cenário quase “deserto” que ali vemos diariamente, com excepção de algumas pessoas que costumam praticar desporto, ainda que muitas prefiram fazê-lo junto à via pública.

Assim, no lago junto à Barra, podia ser criado um circuito de manutenção para corredores e ciclistas, e fomentados os desportos náuticos, tornando-se o local num espaço mais seguro e saudável à pratica do desporto. Este circuito poderia incluir estacionamento automóvel, balneários e cafés com esplanada – um projecto que muito ofereceria à população, com momentos de lazer e de fuga ao desgaste urbano e à azáfama da cidade, abrangente a todas as classes etárias, podendo, inclusivamente, estender-se e interagir com o outro lago adjacente, em perfeita simbiose.

No entanto, para que os lagos possam ser revitalizados, é preciso “purificá-los”. Actualmente a aparência da água não é nada convidativa… nem saudável!

O Ante Projecto do Plano Director das Novas Zonas Urbanas para Macau é uma nova promessa e parece estar planeado com boas intenções para o território e a sua gente. Por isso, na hora de o executar, é preciso ter em consciência que o território tem, efectivamente, de combater a obesidade que tanto nos afecta; e que carece de um “plano alimentar” rigoroso, que uma vez colocado em prática não pode deixar de incluir, em paralelo, uma dose indispensável de responsabilidade cívica por parte de cada um de nós, tendo em consideração o desgaste e a maior escassez dos recursos naturais.

O planeta, esse, também espera uma mudança na consciência humana. Hoje, mais do que nunca, tudo se liga. Nesse sentido, Macau deve ser parte integrante do todo.

 Miguel Augusto

 

COLUNA

Macau, génese de uma cidade

Desde há muito tempo que aquilo que é hoje a RAEM é palco de ocupação humana, ininterrupta, num arco temporal pleno de história, de pulsar de vidas e acontecimentos, em terra, no mar, para além do tempo.

Foi no século XIII que se estabeleceram as primeiras populações chinesas em Macau: a norte, camponeses, muitos vindos da província de Guangdong, transformaram as terras em arrozais e hortas. Ali se fixaria mais tarde a residência do Mandarim, o templo de Kun Yam em Mong Há, que confirmam essa presença antiga (dinastia Ming, a partir de 1368).

Pescadores de Guangdong e de Fukien estabelecer-se-iam depois na Barra e no Porto Interior. A fundação do templo de A-Ma (ou Neang-Ma), como a história da deusa, são a marca dessa origem de Fukien de grande parte destes pescadores e marítimos. Também muitos Tan Ká vieram para aquela área da Barra. Assim, se formaram dois pólos chineses antes dos portugueses: Barra e Mong Há. Ou três, se juntarmos o Patane.

Mas… e a influência portuguesa na cidade? Esta nasceu em 1557 (embora andassem por aqui havia mais de trinta anos), a norte da colina da Barra e da Penha, desde o Porto Interior até à Praia Grande, estendendo-se para Norte até à área da colina do Monte e até Santo António/Gruta de Camões. Um eixo que correspondia à muralha lusa que existia em meados do séc. XVII, a qual fechava a oriente no forte de São Francisco. A norte, tínhamos o Patane, o Ho Pu (a alfândega chinesa), que formariam o Bazar, o coração da cidade chinesa.

A toponímia portuguesa da época, marítima e comercial, reforça essa antiguidade urbanística europeia – entre o mar e as colinas, pontilhada de igrejas e conventos, com fortins e tranqueiras (Barra, São Tiago, Bom Parto, depois a Guia, o Monte, entre outros), a velha Macau…

A ligação da Rua Central a São Paulo, via Largo do Senado, e a partir dela a conexão a São Francisco, constituíam o eixo viário fundamental da cidade, em articulação com os caminhos e vias junto ao mar e às redes viárias criadas e interligadas pelas igrejas. À portuguesa!

Igrejas eram muitas, onde a partir dos seus adros, ou perímetros, desenharam-se arruamentos, em conexão com a malha viária comercial e marítima, entre o Porto Interior a oeste e a Praia Grande a leste, depois crescendo pelo interior, ao longo da Rua do Campo e dos arruamentos interiores a oeste de São Paulo.

A mais antiga Misericórdia no Extremo Oriente, com sua igreja, e o Leal Senado, pautam também a bela cidade portuguesa de Macau, como magistralmente plasmou Chinnery na sua obra pictórica, de apurado vedutismo.

Macau antiga, desenhada pelos portugueses, seguiu o mesmo esquema de outras cidades litorâneas da Expansão Marítima, junto a praias, enseadas ou elevações médias, para permitir acesso e defesa, além de linhas de água (como o Lilau ou a Ribeira do Patane, em Macau). A cidade cresceu e prosperou desde o estabelecimento definitivo de 1557, e em 1580 o visitante jesuíta Valignano assinalava mais de duzentas casas e um bom número de cristãos.

Macau assim se foi desenvolvendo – bela, tranquila, pontilhada por campanários e casas apalaçadas, ruas tortuosas e calçadas de granito, templos e ancoradouros, fortins, juncos, sampanas, velas no horizonte.

 Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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