PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 29

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 29

Discussões religiosas com o imperador Acbar

Temos, portanto, directo da pena do padre Monserrate, um relato detalhado do acampamento de Acbar, o perfil da sua tropa, as cidades por onde passou, o avanço além Indo e a entrada triunfante em Cabul – documento que nenhum historiador de Acbar pode menosprezar.

Feita em grande estilo, a campanha militar deixava muito tempo livre ao rei mogol para diversões e longas charlas, daí que mais de uma vez tenha sido Monserrate convocado à sua presença. Após a partida de Murad, por exemplo, o monarca asiático ordenou que lhe trouxessem um atlas e pediu ao padre que indicasse onde ficava Portugal, admirando-se do conhecimento que os portugueses tinham então das províncias e cidades da Índia e até “da extensão do seu próprio reino”. Monserrate aproveitou para lhe apresentar um resumo escrito dos acontecimentos da Paixão de Cristo e, em resposta às perguntas de Acbar, explicou a razão pela qual Cristo não desceu da Cruz, por que razão permitiu ele que São Tomé colocasse o dedo nas suas feridas, tendo-lhe ainda explicado o significado do “sentar-se à direita de Deus” e do Juízo Final.

Algumas das perguntas de Acbar pareciam-lhe superficiais e triviais, e o facto daquele achar que o Espírito Santo era apenas um outro nome para designar Cristo foi erro que Monserrate considerou desnecessário corrigir. Intrigava de sobremaneira Acbar o celibato do clero, algo que não entendia pois não era “da vontade divina os homens terem esposas?”. Ripostou o sacerdote: “Vossa Alteza não sabe que, de duas coisas boas, muitas vezes uma é melhor que a outra? Assim a prata é boa, mas o ouro é melhor: enquanto a sabedoria é melhor do que o ouro, e a virtude do que qualquer outra coisa. A lua é linda, mas o sol é mais lindo e superior a ela”. Inteirando-se da anuência do rei, acrescenta então o sacerdote: “Portanto, os sacerdotes permaneçam celibatários e solteiros, para que possam seguir coisas melhores: para que possam imitar a Cristo: e para que, livres dos cuidados da esposa, dos filhos e da família, possam passar o tempo separados de todo o desejo. Pois pelo sexto mandamento de Deus toda a luxúria é proibida aos cristãos e, de facto, a toda a humanidade”. Argumentou Acbar se não considerava o padre uma grande insolência querer o homem equivaler-se a Cristo, sendo este o próprio Deus, ao que aquele respondeu: “Realmente cremos e afirmamos que Cristo é Deus, mas declaramos ao mesmo tempo que ele é homem. E, sendo homem, praticou a castidade como exemplo, e também a elogiou muitíssimo muitas vezes no Evangelho”. Quanto ao desejar ser como Cristo, “sim, é de facto o cúmulo da loucura pretendê-lo. Mas, por outro lado, seguir os seus passos na prática das virtudes que ele mesmo praticava é um sinal demonstrativo de piedade e devoção. Pois uma das muitas causas que o levaram a desejar tornar-se homem foi o seu desejo de que pudéssemos imitá-lo nos atributos e actividades da sua verdadeira masculinidade, como a sua humildade, abnegação, castidade, pobreza, obediência e outras virtudes afins”. Lembrou ainda o catalão que nenhum pintor ou escultor, por mais precisa e cuidadosamente pinte um quadro ou esculpa uma estátua, tenta na verdade imitar a natureza. Afinal, embora todos lutamos no fundo dos nossos corações para imitar a Cristo “naquelas virtudes que podem ser reproduzidas num homem”, ainda assim ficamos muito aquém dele.

Gradualmente, o assunto enveredou para a vida e obra do profeta Maomé e as diferenças entre a Bíblia e Alcorão. Afinal, eram ou não livros diferentes? Monserrate começou por salientar a diferença dos mesmos, pois foram escritos em épocas diversas, embora “não contenham declarações mutuamente inconsistentes ou contraditórias”. Não era, afinal, o conteúdo de todos os livros sagrados o mesmo? Monserrate referiu ainda a lei enviada por Deus aos filhos de Israel, “através de Moisés”, para que fossem conduzidos por ela até à vinda de Cristo; porém, com a vinda deste, tal lei deixou de ter sentido. “A Lei [Velho Testamento] e o Evangelho dão alimento às almas dos homens. A Lei é adequada à infância e o Evangelho à maturidade. A única diferença está na maneira de preparar e temperar a comida”, foi a metáfora utilizada pelo missionário. Contra-argumentaria, como era de esperar, um dos caciques dessa corte ambulante, garantindo que também o Alcorão fornecia alimento espiritual ao comum dos mortais. É claro que para o jesuíta, que considerava os ensinamentos do Alcorão contrários ao Evangelho, todo o pensamento nele incluído era “não comida, mas sim veneno”. Mal acabara de dizer isto o sacerdote de imediato pediu perdão a Acbar, pois temia que os muitos muçulmanos presentes o culpassem por ter permitido o estrangeiro falar “tão livre e claramente contra Maomé”. Disse-lhe Acbar que não era homem para ter os seus “sentimentos ultrajados por tais coisas”, pois apenas buscava a verdade, encorajando-o até “a não ter medo de expor os crimes de Maomé”. Como se pode imaginar, tal afirmação foi música para os ouvidos do nosso sacerdote, que dia-após-dia registava com agrado a aproximação de Acbar à fé cristã.

Joaquim Magalhães de Castro

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