PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 26

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 26

O recanto dos yogis

Depois de especular sobre a origem dos caxemires, Monserrate fala-nos dos “gakhars”, habitantes das planícies, esses desde há muito muçulmanos. Classifica-os de guerreiros, robustos e “muito inclinados a roubar”; e isto, pasme-se!, “por causa do carácter do seu país”. Consta que os viajantes raptados eram por eles vendidos como escravos na Pérsia. A capital de que nos fala o jesuíta só pode ser a fortaleza quinhentista de Rothas, hoje Património da UNESCO, a umas dezenas quilómetros da cidade de Jhelum. Monserrate salienta o “estilo europeu” da sua construção, posicionando-a numa colina junto a um afluente do Indo. Na verdade, estamos perante um castelo que se manteve inexpugnável. Até hoje.

Porém, o que mais chamará a atenção a Monserrate será um complexo monástico hindu situado mais a sul, local de difícil acesso, “não podendo ser feito a cavalo”. Sem margem para dúvidas estamos perante o Tilla Jogian, hoje em completa ruína. Mas aquando da passagem de Monserrate e companhia eram as pequenas moradias no seu topo habitadas por devotos do yogi Balnath, que outrora ali residira. O catalão claramente confunde Balnath, divindade local, com Gorakhnath, figura histórica, fundador da seita “nath” que está na origem de um dos muitos ramos dos “sadhus”, os monges mendicantes da Índia. Lembra Monserrate que quem quisesse ser admitido como membro pleno dessa seita, tinha de servir os outros – habitualmente ali viviam, em média, cerca de trezentos indivíduos – durante dois anos. Ajudando na cozinha, cortando a lenha, pastoreando os rebanhos, buscando água – esta última tarefa bastante árdua, especialmente no Verão. Só então eram os novatos investidos com a indumentária da comunidade, não sem antes fazer voto de castidade, podendo depois vaguear por onde quisessem. Porém, fizessem eles algo de indigno de imediato seriam expulsos da agremiação. Distinguia-os o turbante na cabeça, uma túnica até aos pés e o rosto pintado de vermelho.

Monserrate menciona um líder, que “nunca pode deixar a colina”, coadjuvado por um conselho de anciões encarregado de eleger o sucessor em caso de morte daquele. Como símbolo de poder, exibia um tridente de metal envolto em faixas de seda “que pendem e se movem de um lado para outro”. É claro que para o nosso sacerdote tudo aquilo não passava de meras superstições, muito embora, nesse domínio, os excêntricos “sadhus” estivessem longe dos níveis de “absurdo e ignorância” dos conterrâneos muçulmanos e hindus. Nesse particular recorda Monserrate a devoção deles ao profeta Gorakhnath que ali vivera como um eremita na companhia da sua irmã, “trezentos anos atrás, ou assim dizem”. Consta que desde então ninguém mais o vira, embora continuasse a ser alvo de muita reverência, “visto que se diz que ele ainda vive e se mostra em vários lugares e sob várias formas, como Prometeu, e pendura tiras de pano no topo de árvores ou em lugares altos e íngremes, que são sinais de que ele lá esteve”. De forma a melhor adorar o Criador, preconizava o dito guru que ao amanhecer todos se voltassem para leste e saudassem o astro-rei ao som de flautas e conchas. Ora, esta é a descrição do exercício mais comum da prática do yoga: a saudação ao Sol. E tal como hoje milhões de pessoas o fazem em todo o mundo, os anacoretas cumpriam esse ritual logo de manhã cedo. E também ao fim da tarde, neste caso “voltados para oeste”.

Ao contrário do que acontece com os hindus e os maometanos, recorda Monserrate, Balnath não impôs aos seus seguidores quaisquer restrições alimentares ou normas de vida em sociedade. Frugais eram, e muito, “pois comem apenas lentilhas cozidas e ghi”, sendo alguns deles casados. Muito dados à adivinhação e aos oráculos, granjeavam assim a fama de mágicos e “professores religiosos”. Na visão eurocêntrica do nosso padre, Balnath mais não era que um demónio a quem os “hindus tolos” chamavam e adoravam atribuindo-lhe nomes que terminavam “em ‘nat’: como Manquinat, Septenat. Jagarnat, etc.” Aquando da visita da comitiva de Acbar, era sumo-sacerdote do eremitério um idoso que garantia ter “duzentos anos de idade”. Na realidade, não teria mais de oitenta, e se a si mesmo atribuía tão vetusta idade era certamente para impressionar os pobres de espírito, pois no entender do viajado jesuíta virtude e santidade não podiam ser medidas “pelo número de anos que um homem viveu”. Vem de longe a má fama deste peculiar ramo de “sadhus”, como bem notava Monserrate ao referir o grande número deles que se reuniram no local – “muitos dos quais, a fim de exibir sua santidade, se dirigiram completamente nus para certas cavernas que a natureza ou a arte do homem realizou” – ao saberem da visita do rei. Ainda hoje (e eu fui testemunha disso durante as minhas andanças pela Índia) alguns desses ascetas seminus, vistos como santos pela população hindu, não passam de fraudes ambulantes, logrando alguns deles apoderarem-se dos bens de ingénuos visitantes estrangeiros, sobretudo do sexo feminino, na demanda do santo graal da espiritualidade. “Todas as suas artimanhas e pretensa santidade visam a obtenção de ganhos”, já dizia o acutilante sacerdote, que termina a sua dissertação descrevendo-nos um Acbar, permeável ao charme dos ascetas e à “superstição em todas as suas formas”, conduzido pelos ascetas ao local onde Balnath teria vivido, “entrando no local com os pés descalços e os cabelos soltos, um sinal do mais profundo respeito”.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *