Literatura e condição humana
Ora aqui está um tema esgotadíssimo – dirão, porventura, alguns dos meus leitores mais críticos – porque ligar o acto da escrita à reflexão sobre a situação existencial do homem é falar afinal de irmãos gémeos.
Claro que o homem escreve para falar de si. De si e do mundo que o rodeia, que o espanta, que o atemoriza, que quer dominar para não ser dominado, de que é o centro sem saber muitas vezes como, porquê e para quê.
Mas este meu texto não é mero exercício especulativo. É que estou a escrever para um semanário católico e a minha escolha do tema, inspirado na actualidade, não é liberta de intenções conotadas com o universo ético e religioso com que me identifico.
Desde os primórdios do Cristianismo que o relato (também literário) da aventura humana “só” tem um sentido e um valor: o do lento caminhar de cada um de nós, através de derrotas e de vitórias pessoais e colectivas, até aquele destino final em que PLENAMENTE realizamos a nossa condição humana.
SIMPLESMENTE HUMANIDADE
Pois não é a condição humana a matéria prima da Literatura?
E falando deste tema delicado: que mais forte indício – entre outros – de que a condição humana não tem sido respeitada, na actualidade, como quando se aborda a dolorosa questão dos refugiados e dos imigrantes na Europa?
Atente-se na desumanidade da recepção; e no aproveitamento político vergonhoso, por forças xenófobas de cariz nacionalista – tão claramente denunciadas pelo Papa Francisco, como quando na recente viagem à Hungria…
A RAZÃO E AS VOZES
Pois se quanto aos direitos dos migrantes a comunidade internacional tem uma consciência atenta e crítica na pessoa do Secretário-geral da ONU, a Igreja tem um defensor inequívoco na pessoa do Papa Francisco. A que vem juntar-se agora, como aliado natural, na cena internacional – e graças à repercussão mediática global do Prémio Nobel – essa outra voz, fortalecida pelo sofrimento pessoal e por quatro décadas de reflexão, ensino e obra literária: a do professor Abdulrazak Gurnah.
AUTOR DESCONHECIDO
Foi há uma semana que o Comité Nobel atribuiu ao escritor de origem tanzaniana Abdulrazak Gurnah o prestigioso prémio que anualmente põe em evidência a obra de um romancista ou poeta, com suficiente valor para ser elevado ao pódio dos mundialmente consagrados.
Para além do estilo que os novos leitores passarão a melhor conhecer e a admirar, qual a mensagem ou mensagens que valha a pena captar de Abdulrazak Gurnah, com a capacidade notável de comunicação e partilha intelectual que só um grande escritor tem?
Doutro modo: por que lhe foi atribuído o prémio ? O Comité Nobel explica a escolha: ele recebeu o galardão “pela sua análise intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados, a terem que viver no abismo entre culturas e continentes”.
Considerado um dos mais importantes romancistas pós-coloniais contemporâneos na Grã-Bretanha, o professor Gurnah é o primeiro escritor negro africano a ganhar o prémio literário universal desde Wole Soyinka, em 1986.
ENCRUZILHADAS DA VIDA
Zanzibar, a terra natal do escritor, foi palco de uma revolução em 1964, na qual os habitantes de origem árabe foram perseguidos. Gurnah foi forçado a fugir do País quando tinha dezoito anos. E começou a escrever em Inglês como um refugiado de 21 anos, na Inglaterra, embora o Kiswahili seja a sua primeira língua. O seu primeiro romance, “Memory of Departure”, foi publicado em 1987.
Gurnah produziu depois inúmeras obras que colocam questões em torno das ideias de colonialismo e seu efeito sobre a pertença, o desenraizamento, a memória e a migração. De facto, os seus romances repetidamente retratam pessoas deslocadas – seres estranhos por terem de rever frequentemente a sua identidade, em sociedades diferentes.
Ao tratar literariamente a experiência da migração, o autor nutriu-se das suas próprias feridas: deixar para trás a família e a vida passada, trocando-a pela nova vida num meio diverso, onde se sentirá sempre parcialmente estrangeiro.
POSIÇÃO INEQUÍVOCA
E sobre a situação dos deslocados, não já historicamente, mas na actualidade, o que pensa o escritor? Di-lo sem ambiguidades: que a Europa deveria receber os migrantes rodeando-os de compaixão, em vez de cercando-os de arame farpado! Não se pode ser mais frontal na asserção!
E quanto ao Governo britânico, quer dizer, as autoridades do país que adoptou como seu, considera-o hostil para com aqueles que buscam asilo.
Abdulrazak Gurnah expressa admiração para com a coragem daqueles que viajaram de tão longe para escapar dos seus próprios países, em busca de uma nova vida.
Mas – observa – essa procura é vista como se fosse imoral. Usa-se a frase “migrante económico”, como se sê-lo fosse um crime. Por que não emigrar por melhores condições económicas ?, interroga-se.
E regressa à História para lembrar aos europeus o que pelos vistos querem esquecer: “Milhões de europeus, ao longo dos séculos, deixaram as suas casas, e justamente por esse motivo, invadiram o mundo. As pessoas sentiam que deveriam embarcar em viagens tão perigosas para uma nova vida”.
E a pergunta correcta tem que ser posta: O que há de tão horrível onde eles estão, para correrem tantos riscos? “A Europa – disse o escritor – deve repensar a sua abordagem à migração, repudiando a ideia do medo, subjacente ao discurso de que com a imigração a Europa será destruída”.
Abdulzarak Gurnah precisou, todavia, que não advogava a migração “aberta para todos”, mas que não deveria prevalecer uma ideia antagónica e abusiva dos migrantes.
E voltando à questão vista a nível britânico, e estabelecendo a relação entre Brexit e migrantes, disse que, ao sair da União Europeia, o Reino Unido revelou uma “certa maldade” sobre como o País via os imigrantes. Não só europeus, mas muito além das fronteiras da Europa.
NOVO COMBATE
O Prémio Nobel da Literatura terá dado a Abdulrazak Gurnah novas armas para um velho combate. As armas da comunicação de massas, das entrevistas, das conferências, dos debates, das viagens ao estrangeiros para apresentar a sua obra, sujeita agora a reedições em todas as línguas…, porque nisto tudo se desdobrará a partir de agora a sua pessoa, tornada figura pública incontornável.
O laureado de 2021 já o afirmou com o ar frontal a que nos vai habituando: quer prosseguir a defesa dos deslocados/refugiados, clamando pelo intransigente respeito da sua dignidade. E todos são poucos pela boa causa. A da defesa da dignidade de quem, desenraizado, perdeu ou quase a identidade.
Sobre tudo isto escreveu durante décadas – repito – o professor Gurnah, docente emérito da Universidade de Kent.
A MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
Agora, na mesma linha, a Mensagem do Papa no Dia Mundial do MIGRANTE e do REFUGIADO, de 26 de Setembro último, que descreve de forma global o que emerge afinal do combate do Prémio Nobel da Literatura Abdulzarak Gurnah: “A todos os homens e mulheres da terra, apelo a caminharem juntos rumo a um nós cada vez maior, a recomporem a família humana, a fim de construirmos em conjunto o nosso futuro de justiça e paz, tendo o cuidado de ninguém ficar excluído.
O futuro das nossas sociedades é um futuro ‘a cores’, enriquecido pela diversidade e as relações interculturais”.
Carlos Frota