POR TERRAS DE ARRACÃO – 9

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Falcão, a “flor das flores” do Rei Bramá

O compromisso que os mercenários portugueses assumiam com os reis locais obrigavam-nos a combater muitas vezes no lado contrário da barricada de compatriotas seus, amigos ou familiares até, o que dava origem a frequentes mudanças de campo consoante as circunstâncias. O conceito de traição, nesse contexto, não existia. Tal gente não se sentia moralmente obrigada perante soberanos pagãos ou muçulmanos. E estes, sobretudo aqueles cuja guarda pretoriana e poderio bélico residia nos adventícios soldados da fortuna, ficavam reféns das suas metas políticas e ambições pessoais. O caso de Martavão é sintomático.

Capitães como Lançarote Rodrigues e seus companheiros – cujas desventuras falaremos mais tarde, noutro âmbito geográfico –, embora se tivessem dirigido àquele porto com o intuito de vender os seus préstimos a Saw Binnya, a força das circunstâncias levá-los-ia a ficar do lado daquele que se anunciava como inevitável vencedor. E já que falamos de Tabin Shwehti, continuemos a seguir-lhe o rasto no retorno a Pegu, acompanhado do grosso do exército e de comandantes de confiança como João Caeiro, que deixou três ou quatro portugueses, “homens de pouca sustância”, ao serviço do novo vice-rei, o mon Saw Lagun Ein, general de topo do exército birmanês.

Ficaria por lá ainda um tal Gonçalo Falcão, curiosamente, destinatário de uma das mensagens que Pinto trouxera de Malaca. “Homem fidalgo e de bom sangue”, Falcão fora um dos que transitara para o lado contrário no calor do confronto e era já bastante popular entre os locais que o conheciam como “Crisna Pacau” – em Português, “flor das flores” –, honrosa designação atribuída pelo próprio Tabin Shwehti em “paga de serviços”. Qual a natureza desses serviços é o que falta saber, mas que Falcão era criatura prestável a todo o tipo de encomendas, disso não parece haver grandes dúvidas. Senão vejamos:

Cumprindo o seu papel de emissário, Pinto apressou-se a encontrar-se com o dito cujo e no decorrer da conversa confiou-lhe o principal motivo da sua jornada: confirmar e reforçar o vigente acordo de paz e comércio entre Saw Binnya e os portugueses. Mas o nosso “Crisna Pacau”, pese a alcunha que não era flor que se cheirasse, vendo uma oportunidade de ficar ainda mais nas boas graças de monarca birmane, correu a denunciar o compatriota, convencendo Saw Lagun Ein que Pinto fora ali como embaixador do capitão de Malaca para oferecer ajuda militar a Martavão. É claro que novel vice-rei mandou imediatamente prender o nosso escritor, assim como o capitão do junco e todos os tripulantes malaios e menancabos de Samatra, confiscando-lhe as fazendas. Sucumbiria a maioria na masmorra, dos açoites, da fome e da sede. Os sobreviventes, 45 de um total de 119, foram metidos numa sampana sem velas nem remos, rio abaixo, para que a sorte decidisse por eles a sua ventura. A providência fê-los encalhar numa ilhota onde encontraram algum alimento e com os trapos que vestiam fizeram uma vela que lhes permitiu continuar a navegar ao longo da costa rumo a Junçalão (actual Phuket). Dois meses depois, ao chegar à foz do rio Perlis, no reino de Quedá, quase todos tinham morrido de umas “postemas na garganta à maneira de nascidas da peste”. Dois apenas chegaram vivos a Malaca, para contar a Pero de Faria, capitão da fortaleza, tão dramática aventura e o insucesso da missão incumbida a Mendes Pinto. O destino deste não foi menos sombrio; mais de um mês numa masmorra sujeito a interrogatórios e sevícias várias, “pingos de fogo com canudos de lacre”, acabando por ser sentenciado à morte pelo “perro do Bainhá Chaque”, como ele chama ao novo vice-rei de Martavão. No fundo, o depravado mon pretendia apenas apoderar-se dos bens de Mendes Pinto e de todos aqueles que enviara para a morte num barco sem vela nem remos. Aconselhado por amigos a não levar para a frente o seu intento, pois os portugueses de Pegu haveriam de se queixar dele a Tabin Shwehti e dizer-lhe-iam que executara o estrangeiro apenas para roubar os “cem mil cruzados que trouxera do capitão de Malaca”, Saw Lagun Ein acabou por anular a sentença mas manteve em ferrolho secreto o copioso espólio entretanto esbulhado, enviando em ferros para Pegu o nosso aventureiro para ser entregue a um tesoureiro do rei, “por nome Diosoray”, que o juntou a outros oito portugueses, o que restava da guarnição “de uma nau de Dom Anrique D’Eça, de Cananor, que o tempo ali fizera dar à costa”.

Quanto ao Gonçalo Falcão, a “flor das flores” da sacanice, exemplo perfeito do entulho que nos confins do Oriente ainda hoje mancha o bom nome da Nação Portuguesa, o vernacular lambe-botas, vendido ou traidor, consoante a exigência ou benevolência do leitor, enfim, o mercenário no verdadeiro sentido da palavra, o mais provável é que tenha continuado a merecer a mais estremada atenção da parte do monarca birmanês, fazendo os favores que fossem precisos. Que a vossa imaginação se encarregue de deslindar a natureza dos ditos….

Joaquim Magalhães de Castro

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