POR TERRAS DE ARRACÃO – 2

POR TERRAS DE ARRACÃO – 2

O sino-português de Yangon

Confesso que o trânsito, agora mil vezes mais intenso, me deixa inicialmente decepcionado, preparando-me desde logo para o pior à medida que o autocarro desliza no asfalto novinho em folha da corcovada estrada que liga o aeroporto ao centro da urbe. Mas não. Depressa me apercebo que os aspectos positivos da mudança suplantam os menos bons.

Yangon é agora uma cidade de cara lavada, pois dela se arredou a ameaçadora sombra militar que tinha por hábito ocupar (sem preencher, apenas ocupar por ocupar, estranha mania essa…) edifícios públicos inteiros e públicas zonas de lazer. O parque Maha Bandula, mesmo ao lado do pagode Sule, ponto zero da cidade, parece ter sido definitivamente devolvido à população. Coloridos os canteiros, viçosa é a relva, num convite a que nela abanquem famílias inteiras, casalinhos apaixonados ou simples aficionados das “selfies” da moda. De resto, os “nats” votivos permanecem encafuados nos interstícios dos troncos das árvores de São José, na companhia de hibiscos e jasmins, paus de incenso e da ocasional tijela com oferendas, havendo sempre alguém, hoje como outrora, disposto a distribuir mãos cheias de milho aos pombos, ali, bem perto da velhinha Garden Guest House, económica opção para pernoita, agora com muito maior taxa de ocupação e concorrência.

Desta vez, opto por ficar alojado na Shwe Bon Thar, logradouro das farmácias, clínicas e dentistas, pois Yangon, à boa maneira asiática, mantém a tradição de agregar ofícios por ruas. Nesse domínio, é um verdadeiro prolongamento da Índia para leste. Outro aspecto dessa extensão é o traje dos seus habitantes masculinos. Ou melhor dizendo, era, pois predominam agora os “jeans”, uma raridade há duas décadas, mesmo nas urbes. Lentamente vão, os birmanes, substituindo o tradicional “sarong” pelos trapos ocidentais de uso e desuso rápido. E o fenómeno estende-se ao sexo feminino, que é quem mais, por esta paragens, resiste à mudança. Enfim, uma lástima, embora contemporânea inevitabilidade. Onde páram as belas birmanesas de longos cabelos, quase até aos pés, ilustrados com plumérias? Que falta fazem!

A minha breve passagem serve sobretudo para matar saudades dos petiscos de rua, em maior abundância, bem mais refinados e com melhores padrões de higiene, e rever alguns dos locais de referência da antiga capital da Birmânia, muitos deles restaurados e desprovidos do hostil e perigoso arame farpado. Um dos poisos favoritos para dar ao dente – onde ao cair da tarde se abrem alas para um simpático mercado de comida de rua nocturno onde é rei, entre exóticos acepipes vários, um delicioso pargo grelhado – tem como vizinha a afamada rua Strand.

Em toda a extensão desta baixa ribeirinha, apresentam credenciais vetustos mas decrépitos edifícios de traça sino-portuguesa cujas fachadas e paredes mais parecem viveiros de plantas e arbustos vários. Aguardam, esperançosos, que alguém se condoa deles e os recupere antes que o camartelo do progresso os reduza a um monte de escombros. Enquanto isso, vão servindo de respaldo a improvisadas tendas e botecos de rua, pois famílias inteiras nessa parcela da restauração têm o seu ganha pão. Ali, tal como no Vietname, sentados em banquinhos à frente de mesas minúsculas, almoçam e merendam funcionários públicos, operários, empregados de escritório, estudantes e até o ocasional rosto pálido, como é o meu caso, apreciador deste tipo de gastronomia. O comum dos estrangeiros, no entanto, mantém-se ao largo, embora não dispense o obrigatório registo fotográfico acompanhado de um quase forçado sorriso complacente, pois o medo dos micróbios e das bactérias supera de longe a curiosidade pelos paladares alheios.

Por ora, a prioridade das autoridades em termos de recuperação vai para os edifícios coloniais que, apesar de tudo, sobrevivem na zona nobre da cidade, em redor do pagode Sule. São excepções, pela positiva, o edifício da Autoridade Marítima de Myanmar, com a sua característica torre, e a sede dos Correios, ambos com restauros exemplares. Aliás, toda a baixa da cidade, em bom ou mau estado de conservação, é um hino a esse estilo arquitectónico tão comum no Sudeste Asiático e que só em Phuket e Singapura é designado pelo seu correcto nome: sino-português. Unha com carne, em zona tão nobre da cidade, as embaixadas inglesa (British Council acoplado) e australiana posicionam-se estrategicamente ao lado do mais prestigioso ícone patrimonial de origem ocidental em Myanmar. Falo do vitoriano Hotel Strand, edificado no ano 1 do século XX e adquirido pouco depois pelos irmãos Sarkies, arménios de nacionalidade e donos de várias unidades hoteleiras do luxo daquela época, entre as quais o Raffles, de Singapura, e o Eastern & Oriental, de Penang.

Nesses tempos de voga colonial, eram os salões do Strand exclusivamente frequentados pela fauna europeia, hoje, felizmente que a coisa se miscigenou, mantendo-se o requinte de sempre abrilhantado pelos sons de um piano de cauda no lóbi e um bruá-bruá bem popularucho vindo das mesas do restaurante de serviço desse estabelecimento agora aberto a todos. Os pisos de teca e mármore polidos, os móveis de mogno e as camas de dossel são sinais da fidelidade do Strand aos seus pergaminhos, tendo os novos promotores dispensando piscina e ala moderna, até porque não havia espaço. Optou-se pela compra de um dos edifícios próximos, hoje reservado a banquetes de casamentos e eventos do género. Uma sólida escada dupla de teca conduzem-me ao Grand Hall mais elegante de Yangon, adornado com lustres europeus onde decorre (estamos em finais de Janeiro de 2019) o primeiro Festival Internacional de aquarelistas, subordinado ao tema “Peaceful Golden Heritage” e com a participação de artistas de diversos países. Constato, uma vez mais, a excelência dos asiáticos neste tipo de técnica.

Joaquim Magalhães de Castro

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