O Nosso Tempo

Atento ao tempo presente

A noção que se tem de que o Papa é uma pessoa atenta ao nosso tempo e aos seus desafios foi mais uma vez confirmada (como se fosse necessário!…) esta semana, com uma agenda preenchida pelos temas mais candentes da actualidade internacional, desde a problemática do tráfico de seres humanos, ao estatuto da mulher e às questões sociais do continente africano.

Começando por este último, a mensagem do Papa ao Simpósio de representantes das Conferências Episcopais de África e Madagascar foi muito elucidativa quanto aos perigos de uma certa evolução no continente africano, onde a competição por vantagens económicas a qualquer preço, poder e prestígio, constituem formas de endeusamento de falsos valores que não passam de outras tantas “colonizações” dos espíritos, sobretudo no seio das elites emergentes.

E o Papa apontou a educação como a grande terapêutica para as “doenças” do desenvolvimento desequilibrado dessas sociedades novas. A educação que enfatiza os valores prepara os jovens para a vida activa e os dissuade da via da violência.

E do extremismo religioso. O Papa Francisco tocou aqui o problema nevrálgico da tentação do extremismo, tão presente hoje em largas áreas do continente.

 

Humanizar a economia

Por entre tantos temas importantes, relevo todavia pelas suas repercussões junto dos centros de decisão, a mensagem televisiva que endereçou a quinhentos políticos e homens de negócios reunidos em Milão, em congresso dedicado às questões da fome no mundo.

Analisando a situação paradoxal da economia mundial, o Papa Francisco focou três aspectos fundamentais que, caracterizando o sistema global em que vivemos, denunciam e promovem as distorções geradoras da fome, num mundo afinal super-abundante.

Nunca se produziu tanto e nunca foi, todavia, tão óbvia a disparidade dos recipientes, poderia dizer-se. Neste contexto, o Papa Francisco apontou, como causas estruturais das desigualdades presentes, a total autonomia dos mercados e a gangrena da especulação financeira a nível mundial. Desta última, vimos o pior que ela comporta, com a crise financeira internacional de 2008.

O aventureirismo dos gurus da Wall Street conduziu à miséria milhares de detentores de pequenas poupanças, de toda uma vida, sabendo-se agora melhor como as agências de “rating” foram cúmplices desses crimes.

E quanto ao primeiro?

Dogma do liberalismo mais conservador, a autonomia total dos mercados tem sido erigida como o princípio matricial do capitalismo agora global, fonte inquestionável de criação de riqueza, mas também das distorções conhecidas, quanto à sua distribuição.

Fiel à Doutrina Social da Igreja, o Santo Padre invoca aqui, implicitamente, o papel corretor dos Estados na gestão de tantas assimetrias, e do mesmo passo, sem o referir ostensivamente, o papel dos políticos e da política na assunção das suas responsabilidades sociais.

Tendo-se vivido num mundo cheio de ismos ideológicos em épocas ainda recentes, não deixa de ser interessante saber como se resolvem, no quadro actual, sem tais ismos, os mesmos problemas de sempre: os de uma economia sã, para uma sociedade equilibrada.

O debate político e social na Europa e nos Estados Unidos é um excelente exemplo da perplexidade dos responsáveis de todos os sectores, perante os problemas sérios da ordem social.

 

A cegueira do liberalismo

Na América o que mais impressiona é o imobilismo conservador do discurso republicano, onde a obsessão do Estado mínimo permanece cega, como sempre, à deterioração das expectativas de camadas cada vez mais largas da população.

E de tal modo é assim que qualquer ameaça, pelo Executivo, de uma fiscalidade mais pesada sobre as grandes fortunas conduz logo a um cerrar de fileiras no Congresso, agora maioritariamente empresarial, mercantilista.

E na Europa, perante o discurso dogmático do mercado, a esquerda vê-se impotente para defender o Estado Social, bandeira única agora, a diferenciá-la do conservadorismo da direita.

Os resultados do calendário eleitoral europeu do corrente ano permitirão averiguar se terão ganho de causa os projectos anti-austeridade que visam, antes de mais, a protecção dos mais vulneráveis. Ouvindo os discursos das diferentes esquerdas europeias, parece que sim. Parece que se pensa naqueles que foram os mais atingidos pela crise.

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Não tendo a Igreja que se pronunciar sobre opções políticas concretas, de indivíduos ou instituições, parece óbvio que a emergência social em que se vive, no mundo dito desenvolvido, aponta para a adopção de políticas que protejam os mais vulneráveis. Ora, na lógica do Papa, como tem sido frequentemente referido por Francisco, não é a fórmula “mercado pelo mercado” que é o melhor guia de tais prioridades.

 

Um tempo para além do presente

E, para concluir, faço referência a algo que não está naturalmente “no fim da lista”, mas no seu início. Só por coerência do texto a invoco aqui, o que é uma outra maneira de lhe dar relevo.

Num mundo tão carente de valores de referência, sublinhar o testemunho excepcional dos que se distinguiram no passado, muito remoto ou mais recente, é o mesmo que dizer à comunidade do nosso tempo que há apostas de vida que são outros tantos exemplos a seguir.

As canonizações de João XXIII e João Paulo II encerram naturalmente essa mensagem, como que a dizer que é no compromisso concreto com o seu próprio tempo que cada mulher e cada homem se realizam em plenitude.

Falando agora de questão sobre que o Santo Papa se debruçou, falo da personalidade e do exemplo do mártir arcebispo D. Óscar Romero, assassinado quando celebrava missa na catedral de El Salvador.

O processo de beatificação de monsenhor Óscar Romero é também uma forma de o Papa tratar das questões do nosso tempo, apontando direcções – como só a Igreja o faz – que o transcendem já.

Carlos Frota

Universidade de São José

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