Guterres, pelos caminhos do mundo
A recente escolha de António Guterres como o novo Secretário-Geral da ONU não nos deixou indiferentes, a nós portugueses. E, certamente, também não aos nossos amigos dos outros países lusófonos.
E as razões não foram apenas devidas ao bombardeamento mediático que a notícia originou. Elas são principalmente duas: a importância mundial do cargo e as profundas afinidades do escolhido com o mundo que fala Português.
Ramos Horta exemplificaria, há dias, de forma sugestiva, o empenho de Guterres por causas que muito nos uniram, como a da independência de Timor Leste.
Acrescentaria uma terceira razão, a título exclusivamente pessoal: Guterres é católico. Podia ser ateu, ou budista, ou shintoista, mas é cristão e católico.
Uma nova agenda global
Pelas suas opções de vida, pelos valores por que se tem pautado e pela crença que o anima, António Guterres identifica-se com a visão do mundo que é hoje a que melhor serve as necessidades e aspirações do planeta e da superação da sua caótica (des)organização.
Mas visão que não é exclusiva dos cristãos e dos católicos, felizmente para todos nós. É mais abrangente e congrega todos os líderes políticos e religiosos de boa vontade. É uma visão que atenta mais às causas dos conflitos, do que apenas às suas consequências. Mais às razões do radicalismo, e não só às vítimas da violência que gera. E mais à urgência do desenvolvimento, do que ao tratamento paliativo do subdesenvolvimento.
Esta agenda é partilhada por muitos. Assim, desengane-se quem espera que, a partir deste parágrafo do meu texto, eu comece a fazer o elogio prematuro de Guterres, o católico. Porque fechá-lo na gaveta de uma definição formal e pôr-lhe um rótulo é traí-lo a ele e ao Catolicismo aberto que professa.
A política para ele foi sempre o instrumento de valores mais altos e não um fim em si mesma. Desde logo também porque o Catolicismo de Guterres abriu-o e abre-o para um mundo muito para além da política politiqueira. Mundo onde acolhe todos, fala com todos, respeita todos, ajuda todos. Ora, tudo isto cria no novo Secretário-Geral da ONU níveis de exigência pessoal que lhe impedirão de ter um mandato morno e acomodado, de mero funcionário, proeminente que seja.
A vida internacional, com suas crises, com seus impasses, com seus perigos e dramas e tragédias, não lhe dará repouso. Mas Guterres sabe ao que vai. Ele está preparado, tanto quanto se pode falar de preparação para o desconhecido.
Porque a verdade é que nunca se está verdadeiramente preparado para tsunamis e tufões e terramotos, tão incerta a altura das ondas, a capacidade destruidora do vento e os choques e contra-choques das placas teutónicas.
As relações entre Estados têm a sua meteorologia, mas nunca beneficiam da relativa previsibilidade das estações do ano… tudo pode acontecer por capricho da natureza, que em política internacional tem sobretudo a ver com a natureza humana.
Falar com todos
Outro aspecto importante da personalidade de Guterres que lhe servirá admiravelmente como Secretário-Geral e ficou já simbolicamente demonstrado na declaração inicial, em várias línguas, subsequente à sua aclamação pelo Conselho de Segurança: o ex-Primeiro-Ministro português com todos fala, porque com todos sabe falar. E saber falar com todos não é só dominar idiomas estrangeiros, mas é saber sair do nicho protector da sua cultura e ir em direcção aos outros, tentando compreendê-los – a partir do ponto de vista que é o deles.
Assim o moldou um espírito aberto, a que o seu já longo percurso internacional deu ainda maior consistência. E o seu gosto pelo estudo da História dos povos conferindo-lhe a clarividência bastante para ter em atenção a “verdade” de cada um dos seus interlocutores.
Lembro-me de um discurso de Guterres aqui em Macau, nas vésperas da cerimónia de transferência de poderes. E lembro-me de como fiquei seduzido não apenas pela forma, mas pela sensibilidade que revelava quanto ao lugar de Macau e da China no nosso relacionamento histórico.
Compreender a história dos outros, para um país e um povo de muitas viagens como o nosso, é fazer justiça à nossa própria História. Guterres, o medianeiro, sabe disso.
Guterres e os líderes mundiais
Mais do que todos os seus antecessores, Guterres tem da China a memória histórica única do encontro de culturas e civilizações que todos os portugueses cultos têm.
Mesmo Ban Ki-moon, o coreano, não terá (et pour cause…) a visão que os europeus – e os portugueses em particular – nutriram durante séculos da China como o grande mistério a desvendar! Ou aquela metade da humanidade que era preciso fazer o esforço de compreender… A reflexão sobre Macau a que acima aludi é um bom testemunho do quanto essa memória histórica está inscrita na sua visão do mundo.
Acresce a isso que Guterres é um excelente observador da vida internacional, dos dinamismos de mudança que particularmente na China têm lugar, desde já quase quatro décadas, e do seu crescente envolvimento na vida internacional e em todas as organizações da família das Nações Unidas.
Guterres saberá falar com China, por todas as razões acima aludidas. E pela consciência aguda de que a ONU precisa de um parceiro com vocação global que ajude a organização a atingir os seus fins, mormente na ajuda económica e logística em acções humanitárias a que Guterres é tão sensível e em que aumenta regularmente a contribuição chinesa.
Mas, como será a relação de Guterres com o novo/a nova Presidente americano/a? Se há anos luz entre Donald Trump e Hillary Clinton, no quadro internacional antecipa-se já o que poderá ser a diplomacia do Sr. Donald, se for eleito…
Mas mais do que o estilo é a convicção nas virtudes do multilateralismo que a ONU precisa. E não a América-fortaleza…
Qualquer Secretário-Geral necessita que os principais actores do sistema internacional acreditem que a ONU serve para alguma coisa de construtivo, e não apenas como palco para os dramas sem fim de dissensões e conflitos.
Carlos Frota
Universidade de São José