Das indulgências de Leão X à revolta de Lutero.
O Papa Francisco, vigoroso defensor da unidade dos cristãos, participou na passada segunda-feira em Lund, no sul da Suécia, no arranque das comemorações do 500º aniversário da Reforma de Martinho Lutero, de mãos dadas com os protestantes. Com efeito, tratou-se da primeira comemoração ecuménica entre a Igreja Católica e a Luterana para recordar e reviver, em concórdia, o movimento de reforma encetado pelo frade agostinho alemão Martinho Lutero (1483-1546) que provocou um cisma na Igreja no século XVI.
A visita tem suscitado o entusiasmo de teólogos, tanto luteranos como católicos, para lá do aspecto comemorativo. O realce dos sólidos progressos no diálogo entre católicos e luteranos imprime uma marca de futuro nesta viagem apostólica, pois 2017 marcará também o 50º aniversário do início do diálogo luterano-católico, na sequência do Concílio Vaticano II. Em 1999, após trinta anos de negociações, a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial (LWF), fundada em Lund, assinaram uma declaração comum histórica que permitiu acertar algumas divergências doutrinais. Lutero “não pretendia dividir, mas reformar a Igreja”, anota o documento, que pretende limar os pontos de discórdia entre as duas confissões.
Lutero, o homem
Lutero foi o reformador da Igreja que deixou uma marca mais decisiva e profunda, mais perene. E foi, no séc. XVI, o pioneiro. Apesar de antes dele outros terem tentado e lutado pela reforma da Igreja. Mas sem o sucesso de Martinho Lutero. Nasceu em 1483 em Eisleben, na actual Alemanha (à época, Sacro Império Românico Germânico), foi frade da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho. Era um religioso de grande rigor, devoto e escrupuloso, persistente e apaixonado nas suas causas e opções, embora um tanto volátil nos humores e também obsessivo, frenético até. Era ao mesmo tempo que um bom teólogo, um místico arrebatado.
Seu pai era não tinha dificuldades, era proprietário de minas. O jovem Martinho pôde por isso estudar a nível superior. Entrou em 1501 na Universidade de Erfurt, onde viria a obter o grau de magister artium (“Mestre em Artes”). Naquela cidade conhecera a vocação religiosa, que cumpriria no priorado dos Agostinhos em Erfurt. Em 1507 fora ordenado sacerdote, indo estudar para a Universidade de Wittenberg (Vitemberga), onde se doutoraria. Como se pode aferir, estudos e formação não faltaram a este jovem frade. Nesta última universidade viria a suceder na docência ao seu mestre frei Johann von Staupitz, vigário geral da Observância dos Agostinhos na Alemanha, na cátedra de estudos bíblicos. Ali permaneceria até à morte. A Bíblia era uma das suas paixões, mas também um dos fundamentos da sua fé.
O começo da Reforma
Martinho era um homem agitado, astuto, brilhante, mas polémico. Tornou-se conhecido pelas suas causas, pela sua integridade na fé também. Em 1511, tinha então 28 anos, Lutero foi enviado em missão diplomática a Roma para solucionar uma divergência entre sete conventos da sua Ordem e o vigário geral. Porém, a imagem que reteve de Roma marcou-o para sempre. Roma, recorde-se, não vivia nos seus melhores dias em termos de santidade e espiritualidade ou moralidade públicas. A corrupção, a imoralidade, a calúnia, o desrespeito e indisciplina de parte do clero e mesmo na cúpula da Igreja, principalmente para com o Sagrado, marcaram em Martinho uma profunda decepção. Embora profundamente entristecido, as esmagadoras desilusões que sofreu não o levaram a abandonar a sua Igreja.
Mas em 1516, há 500 anos, algo despontou na sua Alemanha natal que o entristeceu mas ao mesmo tempo enfureceu. A Reforma, poder-se-ia afirmar que começara aí, embora 1517 seja a data de afixação das 95 teses na porta da igreja paroquial de Vitemberga. Estas resultam do que um ano antes enfurecera Lutero: nesse ano de 1516 frei Johann Tetzel, inflamado pregador dominicano e comissário papal para indulgências, fora enviado à Alemanha. Missão: pregar as indulgências. Para quê: obtenção de dinheiro para reedificação da basílica de São Pedro. Leão X Médici pretendia reconstruir a velha basílica vaticana, que ameaçava ruir, quase como uma metáfora da Igreja de então. Justificação de Tetzel na sua pregação: não só a fé salva ou justifica o homem; este deverá ser também activo na caridade e nas boas obras. Ora, dizia, os benefícios das boas obras poderiam ser obtidos pela doação de dinheiro à Igreja: através, por exemplo, das indulgências.
Reacção e revolta de Lutero
A partir de então Lutero não mais parou de protestar veementemente contra aquele nefasto “sacro comércio”, até escrever ao seu bispo D. Alberto de Mogúncia (Mainz) em protesto contra as indulgências, anexando uma cópia da sua “Disputa de Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências”, que ficaria conhecido como as “95 teses”, que acabariam pregadas na porta da igreja paroquial de Vitemberga. Estava-se em 31 de Outubro de 1517, um ano depois de Tetzel ter pregado as famigeradas indulgências e suscitado a iracunda mas fundamentada reacção reformista de Lutero.
Não olvidemos que Lutero era culto, conhecedor de línguas bíblicas, dada a sua paixão e exegese e estudo das Sagradas Escrituras, era um erudito que vivia no país onde algumas décadas antes Gutenberg inventara a imprensa de caracteres móveis. Leitura, livros, conhecimento eram palavras de ordem na Alemanha de Lutero. Por isso traduziu a Bíblia para alemão, para que o povo a lesse e percebesse, directamente. Traduziu, por exemplo, em três meses, o Novo Testamento (1522), mas que reveria constantemente até morrer. Era rigoroso. «Esforcei-me para tornar Moisés tão alemão para que ninguém possa pensar que era hebreu». A sua tradução completa da Bíblia só sairia do prelo, todavia, em 1534.
O problema fundamental da vida de Lutero foi o de saber se e como pode o homem alcançar a certeza da sua salvação eterna. Achava que tal não seria só pelo cumprimento de actos salvíficos e certos preceitos. Lutero defendia que a solução estaria mais numa fé incondicional, firme e confiante na graça divina. Lutero converteu-se assim em herói da liberdade e o Luteranismo, ou Protestantismo, converteu-se, para os seus seguidores, em princípio da liberdade. Assim é desde 1516-17. Agora, a caminho de um futuro para testemunho cristão comum.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa