O Nosso Tempo

Para que o mundo acredite.

“Para que o mundo acredite que o cimento da unidade é mais forte do que as sementes da divisão. Para que o mundo acredite que é mais forte o que nos une do que o que nos divide. Para que o mundo acredite que os cristãos de todas as denominações podem ultrapassar os fatalismos da História e ser instrumentos de paz e de reconciliação, num mundo cheio de conflitos e ódios”.

Estas ideias, repetidas várias vezes durante a oração comum na catedral de Lund e no encontro ecuménico que se lhe seguiu, vêem-me à mente com insistência, quando tento ordenar as ideias que me assaltam, ao seguir as cerimónias da visita do Santo Padre à Suécia.

O objectivo, como se sabe, era o estar junto dos cristãos luteranos na comemoração (não celebração, disseram os mais avisados da terminologia utilizada) dos quinhentos anos da Reforma e dos cinquenta anos do início do diálogo entre a Igreja e aquela denominação protestante.

Os encontros de Lund foram extremamente dignos e tocantes na sua simplicidade. Foram espontâneos e sinceros nessa busca da unidade perdida.

E lembrei-me da parábola de Jesus: qual é o bom pastor que não deixa noventa e nove ovelhas para ir à procura da centésima ovelha tresmalhada?

O homem vestido de branco era ali, como sempre, o bom pastor. E por mais que fosse oficialmente um mero convidado, todos lhe reconheceram a preeminência do sucessor de Pedro.

É em torno de Pedro que a unidade se fará – todos o sentiram. Como poderia ser de modo diferente?

Mas… e o debate?

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“Magnífico!”, dizem alguns. “Traição!”, exclamam outros. “A Igreja abdicou e rendeu-se!”, continuam os segundos. “Esse é o preço da reconciliação!”, prosseguem os primeiros.

Não, quem devia dar o primeiro passo e pedir perdão eram eles, os outros…

Antes pelo contrário, o Papa Francisco dá o magnífico exemplo de um coração aberto e generoso, inspirado na vida e nos ensinamentos de Cristo! Perdoar, perdoar, setenta vezes sete vezes…

Pois, pois, o Papa acaba é por revelar as fracturas de uma Igreja desorientada que não sabe que caminho tomar, no seu afã de tudo querer abarcar! Até de dentro do Vaticano é criticado!

Ora, ora, quem não sabe que é mesmo no seio da Igreja que reside a maior rigidez, a maior reacção à mudança, por uma gerontocracia que foi educada a anatemizar todos os de fora? E são tantos os de fora! E isto a pretexto de estar a defender uma ortodoxia que é afinal cega aos desafios do século!

Mas não chegamos afinal à conclusão, depois destes séculos de separação, ódios e guerras, que temos muito mais em comum com os nossos irmãos separados, do que o que nos divide?

Pelo contrário, muito nos divide e continuará a dividir, dirão os recalcitrantes: eles, os outros, renegaram artigos e práticas essenciais do Catolicismo: a confissão, a eucaristia como presença real, o culto mariano…

E para alguns o debate prosseguirá ad aeternum.

 

Sarar as feridas, aprender a esquecer

E aprender com os erros comuns. E aceitar o que houve de válido nas experiências diferentes, originadas pela separação.

Retrato do passado: Wittenberg, 1517. As 95 teses. Os noventa e cinco reptos à autoridade papal. A revolta contra Roma e particularmente contra Leão X, sete anos depois da visita que Lutero fez à Cidade Eterna e que tanto o marcaria.

Há quanto tempo aprendi tudo isto nas disciplinas de História Universal? Há mais de cinquenta anos! E quanto isto nos marcou, a mim e a todos os outros, crianças e adolescentes com educação católica? A resposta mais simples e verdadeira é a que se cola à realidade de todas as fracturas e separações: um muro se ergueu e ainda não foi destruído. E não há muros que caiam tão facilmente quando se trata de destruir desconfianças e preconceitos de cinco séculos…

Falar de católicos em certos sectores protestantes mais conservadores é falar do diabo… gentileza retribuída nos mesmos termos quando entre católicos mais idosos e/ou mais radicalizados se fala de protestantes.

 

Consequências de uma cólera “justa”(?)

Sinto curiosidade em rever o perfil do modesto monge dominicano que, involuntariamente, maiores alterações provocou na Europa espiritual, social e política do seu tempo e das épocas seguintes. O jovem professor de Teologia que quer uma Igreja isenta dos pecados da mundanidade que terá visto na corte papal.

Com a sua reacção quebrou-se o princípio da unidade da Igreja, sob a autoridade do sucessor de Pedro. A revolta de Lutero e dos seus seguidores noutros países daria lugar a igrejas nacionais com dinâmicas próprias. E – é verdade – a uma duradoura e obsessiva “cultura contra Roma”.

O anti-papismo passou a ser inscrito na memória colectiva de certas áreas do mundo, mormente os mundos germânico e o anglo-saxónico – como o símbolo mesmo de maior liberdade da consciência individual, contra o tão debatido centralismo da Igreja – cujo combate (pela positiva) constitui hoje o grande imperativo.

É interessante ver como a insistência de Francisco num poder da Igreja que não é mando mas serviço se presta bem a este reaproximar dos irmãos separados, não para definir novas hierarquias de poder, mas novas prioridades de serviço, a favor dos mais necessitados.

E porque a autoridade dos Papas esteve no centro da ruptura histórica, é com manifesta sensibilidade e delicadeza que o Papa Francisco, na esteira aliás dos seus antecessores mais recentes, desde São João XXIII, gere as suas relações com as outras igrejas cristãs na base de um princípio de estrita colegialidade que faz do Bispo de Roma um entre iguais.

 

O escândalo da divisão

Toda a questão reside em saber como responder, enquanto cristão, ao desafio comum que está na indiferença generalizada à proposta sempre renovada de um mundo com Deus, de Deus, num tempo que O dispensa, O demite, O expulsa: se pela união de esforços entre todas as designações da família cristã, se pelo oposto que dá razão aos descrentes. Se nem entre eles se conseguem entender!?…

Porque é o Cristianismo no seu conjunto que não se torna credível, se a falta de unidade persiste em clara violação da Mensagem e do Mensageiro fundadores.

Porque falta a voz cristã unida em questões essenciais como a vida e a morte (do aborto à eutanásia), a família e a defesa da sua estabilidade, o sistema económico e o aumento das desigualdades, os objectivos do desenvolvimento sustentado, as causas dos conflitos, as respostas a crises humanitárias, etc. etc. etc.

Onde me situo no debate, pois? Bem haja, Santo Padre!

Carlos Frota 

Universidade de São José

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