MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 5

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 5

O santo Pir Badar e o misterioso Pascoal Peres Botelho

Para além dos mercadores portugueses a que nos referimos na peça de há duas semanas, outros se haveriam de instalar na cidade mogol de Daca. Eram de cepa bem diversa, é certo, e passearam-se em grande outrora por terras del rei de Arracão, a quem serviam com armamento e engenho militar. Habitavam sobretudo em Chittagong e na ilha vizinha de Sundiva (hoje Sandwip), onde como complemento à actividade guerreira controlavam o lucrativo negócio do sal. No vice-reinado de Shaista Khan (1664-1688) toda essa gente, agora de candeias às avessas com os antigos senhores arracaneses, estabelecer-se-ia num bairro de Daca apropriadamente designado, desde então, Feringhi Bazar. Na realidade, foram todos eles aliciados pelo general mogol a desertar o soberano gentio e a juntar-se ao conquistador muçulmano, e, como recompensa, receberiam as tais terras, situadas doze milhas a sul do centro da actual capital do Bangladesh, mais propriamente no bairro de Muktarpur-Mirkadim (será que Mirkadim tem algo a ver com o vocábulo “mercado”?) na cidade satélite de Munshiganj, banhada pelo rio Dhaleshwari. Tudo isto não muito longe do forte de Idrakpur, construído pelos mogóis precisamente para proteger a cidade das incursões dos piratas arracaneses e dos mencionados portugueses que de temidos inimigos passariam a residentes permanentes.

Abundam por toda Bengala divindades associadas à miríade de veios de água que compõem o vasto delta, sendo Pir Badar a mais afamada de todas. É o seu nome que invocam os marinheiros e pescadores locais sempre que iniciam nova viagem, fluvial ou marítima, ou quando ultrapassada foi a mais temida das tormentas. Todos lhe atribuem residência em Chittagong, embora desconheçam a razão e a origem do seu desmesurado poder. Suscita-me redobrada curiosidade este santo bengali, pois há quem o identifique com um misterioso marujo português – um tal “Pas Gual Peeris Botheilo” – que teria chegado à costa de Chittagong agarrado a um pedaço de lenho do seu naufragado navio. Asseguram outros que Pir Badar demandara ali “flutuando numa rocha” e de imediato informara os siderados habitantes ter partido daquele jeito da distante cidade de Akyab – assim designavam os britânicos Sittwe, a presente capital da província birmanesa do Arracão.

Ora, padecia nessa altura o bairro de Chittagong de uma epidemia de “jins”, ou seja, “espíritos malignos”, prontamente exterminados por Pir Badar que aproveitaria o ensejo para se apossar de todo o País. O moderno cenotáfio a ele ofertado, o Dargah, situa-se bem no centro de Chittagong e é até considerado o verdadeiro paládio da cidade. São seus guardiões uma série de faquires escolhidos a dedo que mantêm escrupulosamente limpa a mesquita anexa e os quartos destinados aos peregrinos. Nos dez nichos da parede do cenotáfio ardem dia e noite dez lâmpadas a óleo prontas a mostrar as vistas aos peregrinos que de todas as partes de Bengala visitam o Dargah em cumprimento de votos ou para obter os favores do santo em honra do qual se celebra anualmente um festival no 29º dia do Ramadão. Mas, afinal, quem realmente é Pir Badar? Poucas dúvidas restam que não seja outro senão um tal Badruddin, “lua cheia da Fé” (ou Badr-i’Alam, “lua cheia do mundo”, como também é conhecido), nado e criado na província nortenha de Mirat e durante largos anos residente em Chittagong, onde morreria, algures em 1440, tendo sido sepultado em Bihar. Sabe-se que terá vagamundeado pela região travestido de faquir, embora escasseiem os detalhes sobre a sua actividade.

Certamente fruto da tolerância e superstição, características prevalentes em Bengala, tanto os hindus como os muçulmanos piamente veneram Pir Badar. Até os “maghs” (arracaneses), que são budistas, lhe pagam promessas. A razão da sua existência deve-se, muito provavelmente, a um primitivo culto animista – característica comum dos povos aborígenes não-arianos da Índia, sempre prenhes de demónios e espíritos tutelares – que terá sobrevivido à chegada e implantação, primeiro, do Hinduísmo, e, subsequentemente, do Islão. Passo decisivo nesse processo de transformação terá sido a apropriação do nome de qualquer santo muçulmano de vasta notoriedade em torno do qual se aglomeraria todo um manancial de lendas que foram variando nos pormenores e ingredientes consoante os distritos. Numa região onde abundam mares e rios, génio que controle as águas e acalme as tempestades é, desde logo, candidato natural e inevitável ao topo do panteão animista.

Em Bengala Oriental, além de Pir Badar há também um Zinda Ghazi, um Ghazi Miyan, um Panch Pir, e tantos outros que entre si possuem ou não laços de parentesco. Não é de todo inverosímil que um certo Badruddin tenha chegado a Chittagong, por via marítima ou fluvial, vindo de Daca ou de Sittwe. Também é altamente provável que a sua embarcação tenha naufragado nos perigosos bancos de areia da foz do rio Chittagong, onde tantos navios viram o fim dos seus dias, e que tenha nadado ou se arrastado pela lama até terra. Outra forte possibilidade é a de ter chegado a bordo de um dos numerosos navios portugueses que na época frequentavam as águas do Golfo de Bengala. Como se vê, reunidos estão todos os ingredientes necessários para urdir o pano com que se tecem as lendas como a do mencionado marinheiro lusitano em cujo nome corrompido podemos reconhecer um óbvio Pascoal Peres Botelho. Talvez Badruddin e Botelho tenham chegado a terra juntos, só que nesse caso o Badruddin em questão não poderia ter sido o homem que morreu em Bihar, em 1440, já que os portugueses só chegaram à Índia cinquenta anos após essa data. O que não quer dizer que não houvessem portugueses por estas paragens, pelo menos não oficialmente. Se tal tivermos em consideração, então ganha enorme peso a lenda que identifica o santo Pir Badar ao português “Pas Gual Peeris Botheilo”. Não é caso único na região. Estou a lembrar-me, por exemplo, da santidade atribuída pelos povos do Nepal oriental ao jesuíta Manuel Dias, que morreu no reino do Morondo quando se dirigia ao Tibete na companhia do nosso já conhecido padre João Cabral.

Feito este parênteses, regressemos ao cemitério anexo à igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde um mero acaso leva-me ao encontro de um desses patrícios que ao ver-me deambular por ali em boa hora decide abordar-me. Chama-se Mark Gomes e é originário de Chittagong, onde abundam luso-descendentes. «Aí comecei a trabalhar como empregado de mesa, num pequeno restaurante, e mais tarde vim para cá e consegui emprego no Westin», informa com um iluminado sorriso de satisfação. O amigo que o acompanha, Francisco Cruz, é mais sisudo na apresentação das respectivas credenciais: «Sou formador de professores. Viajo por todo o Bangladesh para explicar como bem ensinar o Inglês». Não dirá que Cruz seja nome comum mas está consciente que os seus antepassados eram portugueses e foi deles que herdou o “título”.

Por estas bandas designam os apelidos de “títulos” e exibem-nos como se de comendas se tratassem. «Muitos de nós ainda hoje temos esses títulos», insiste Cruz, que conhece gente com apelido Dias, Gomes, Anjos e Rosário. Já o apelido Sousa, curiosamente, desconhece, embora seja, muito provavelmente, o mais comum da Índia Portuguesa. «Sousas, não, mas há Gonçalves», volta a entrar na conversa o sorridente Mark. E o que sabe esta gente do Portugal de hoje? «Gosto muito do Cristiano Ronaldo. É o meu futebolista favorito. E vi Portugal na televisão e sei que Lisboa é a capital do País», confessa. Onde é que já ouvi isto? Ambos pensavam que Castro era uma forma de Costa, apelido que conhecem bem, e apressam-se a dar exemplos de outros apelidos com clara origem norte-europeia, resultado das missionações posteriores, que não vêm aqui ao caso. Segue-se um convite para uma xícara de chá e uma conversa com o pároco de Tesgão. Este, de apelido Monteiro, e para meu desapontamento, pouco me tem a dizer. Mark Gomes, contudo, revela-se uma surpreendente fonte de informação. E é com ele que passo um bom momento a tentar decifrar palavras de origem portuguesa presentes no léxico da língua bengali. Aí vão algumas delas: sabão – shabun; toalha – tuale; mesa – mesalah; porta – portah; armário – almari; cartaz – cata; chave – xavi; balde – baldi; mulher – moulya; porão – purauh; nau – nau; padre – padri; igreja – greja; missa – misah; tabaco – tabaku.

Joaquim Magalhães de Castro

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