MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 48

MEMÓRIA PORTUGUESA NO NORDESTE DA ÍNDIA E NO BANGLADESH – 48

O massacre de Deli e as igrejas sobreviventes

Durante a pilhagem e o incêndio que se seguiram à conquista de Deli pelo persa Nader Shah, fundador da dinastia Afashrid, em 1739, restavam nessa cidade dois jesuítas, portugueses de nacionalidade como o comprova um texto redigido em Chandernagor a 9 de Fevereiro de 1740 pelo punho do clérigo J. Saignes. Diz-nos o francês que havia duas igrejas em Deli, construídas sob os auspícios do imperador Jahangir, onde ministravam os sacramentos “a alguns remanescentes de uma comunidade cristã de setecentas pessoas” dois padres que miraculosamente escaparam ao massacre. Quanto ao destino dessa comunidade não é difícil adivinhar o desfecho: pereceram na refrega a maioria dos homens capazes de empunhar armas, “todos ao serviço do Imperador”, e o palácio de uma senhora cristã, “célebre pela sua piedade e muito estimado pelo Imperador e pela Corte”, teve o mesmo destino das igrejas: a completa destruição. Tratar-se-ia, a referida senhora, de Isabella Velho, sobrinha da mui badalada Dona Juliana da Costa (sobre a qual já aqui falámos), ou estaremos nós perante a própria Juliana, já que ela era dona de vastos terrenos em redor de Deli?

Estima-se que nesse fatídico 22 de Março de 1739 entre vinte a trinta mil indianos – homens, mulheres e crianças – sobraçaram trespassados pelas espadas da tropa do belicoso Xá da Pérsia. O poeta e pastor anglicano James Montgomery fala inclusivamente em “trezentos mil indianos massacrados durante a invasão da Índia por Nader Shah”, tendo na altura chamado a atenção, certo representante da Companhia Holandesa das Índias Orientais sedeado em Deli, para as “cerca de dez mil mulheres e crianças feitas escravas”. Tanto muçulmanos como hindus preferiram suicidar-se, após sacrificarem mulheres e filhos, poupando-os assim à crueldade da soldadesca. Atentemos ao que diz a crónica Tazkira: “Aqui e ali houve algum confronto, mas na maioria dos lugares as pessoas foram massacradas sem oferecer resistência. Os persas impuseram a sua mão implacável sobre tudo e todos. Durante muito tempo as ruas permaneceram cobertas de cadáveres, como os passeios de um jardim com folhas mortas e flores. A cidade foi reduzida a cinzas”.

Claro sinal da resiliência missionária em tempos de grave crise, a fundação de uma igreja em Narwar (cercanias da actual cidade de Bhopal), na Índia Central, sob a alçada de um governador hindu. O certo é que após o saque de Deli, um magnata cristão, como nos lembra Edward Maclagan na admirável obra “Os jesuítas e Grão Mogol”, reforçaria a sua já considerável influência. Não nos revelam a sua identidade as cartas dos jesuítas, embora a tradição local o apresente como membro da família dos “Bourbons indianos”, ainda hoje a arvorar pergaminhos, matéria que só por si merecerá atenção direccionada neste mesmo espaço. Temos pois, e sob os auspícios do misterioso personagem, igreja construída e o seu funcionamento e manutenção assegurados graças a generosidade do rajá. Pôde suster-se assim o padre residente e os mais pobres dos seus paroquianos.

Atentos, trataram os jesuítas, algures em 1742, de colocar no terreno um dos seus homens. Mas como não aconteciam conversões e a congregação se resumia aos súbditos do misterioso nobre cristão, a dita missão seria sol de pouca dura. Mesmo assim, essas pessoas, na sua maioria, podiam suprir, de vez em quando, as necessidades; eram irmãos cristãos, pobres, residentes em Agra. Esta pequena comunidade foi no entanto diminuindo gradualmente e em 1765 o sacerdote responsável decidiu abandonar a estação. Resumindo e concluindo: em meados do Século XVIII, a Companhia de Jesus mantinha em todo o território sob o controlo mogol apenas cinco igrejas. Os referidos templos de Deli, e um em cada um destes locais: Narwar, Jaipur e Agra.

Com os recursos a esvair-se, desprovidos das subvenções outrora fornecidas pelos governantes indianos e, sobretudo, sem o apoio do Colégio de Agra, os missionários cedo se aperceberam que não poderiam aguentar a situação durante muito mais tempo. Tão pouco as finanças de Goa se podiam dar ao luxo de continuar a suportar residências remotas no território mogol… Como agravante, na Europa, a Companhia de Jesus passava por uma onda de atribulações que teria repercussões em todo o Oriente. Era anunciado em Portugal, em 1759, o decreto urdido pelo ambicioso Marquês de Pombal e assinado por D. José I que bania os jesuítas dos domínios portugueses. Consequentemente, desapareceria o centro provincial dessa congregação em Goa e com ele a missão destacada no Grande Mogol. Como bem observou Edward Blunt – escritor e funcionário público da Índia Britânica, nado e criado nas Maurícias, que nos legou uma detalhada lista de lápides com nomes de cristãos sepultados nas Províncias Unidas de Oudh e Agra –, “uma missão fundada”, graças à boa vontade de “um imperador pagão”, acabaria por ser “exterminada por um rei cristão”.

Joaquim Magalhães de Castro

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