CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CLXXXII

O Pietismo – VI

O Pietismo é uma das mais fecundas reformas dentro da própria reforma, ou, dito de outro modo, um dos movimentos reformadores mais complexos mas mais distintivos, pondo mesmo em causa a própria reforma. Por isso, continua a ser um tema que suscita acesos debates filosóficos e teológicos, o que atesta a sua vitalidade e complexidade.

Com efeito, a grande diversidade de opiniões, mesmo na actualidade, sobre o Pietismo deve-se não apenas ao facto do movimento, como conceito peculiar do Cristianismo de matriz protestante, ser naturalmente julgado de acordo com a posição dogmática de cada indivíduo, mas também pela própria natureza da tendência pietista.

A mera questão relativa às fontes autorizadas para uma definição da essência do Pietismo apresenta logo em si grandes dificuldades, uma vez que o movimento não produziu nem escritos doutrinários nem oficiais, nem princípios que, reconhecidos em todos os lugares e em todos os tempos, poderiam constituir uma afiliação regular da causa pietista. Portanto, o único recurso, neste âmbito, é a literatura privada produzida no seio do movimento, por parte de algumas das suas figuras proeminentes e tutelares, literatura essa que é, todavia, predominantemente devocional. No entanto, essas fontes literárias deverão ser usadas com a devida prudência e filtragens, devido ao seu carácter amplamente subjectivo e momentâneo, ou pontual. Essas fontes, ao mesmo tempo, eram também partilhadas por outros sectores luteranos. Por outro lado, as fontes puramente biográficas são incrivelmente escassas. Além disso, na sua complexidade, o Pietismo engloba fenómenos muito heterogéneos e muitas vezes sem conexão, assumindo fases extremamente divergentes em diferentes indivíduos ou regiões, vivendo ao mesmo tempo, mas em regiões diferentes, com antecedentes diferentes e em condições distintas.

A acrescentar a todas estas variações ou peculiaridades espácio-temporais, ou sectoriais, o movimento foi também submetido às mais diversas conexões, para não falar nas variantes que distinguiam as principais fases do movimento umas das outras, ou do desenvolvimento que cada uma dessas fases produzia independentemente. Ou seja, ritmos, fases e regionalismos, com variações dentro de cada e criação de novas tendências, porque o domínio do subjectivo e do circunstancial foi sempre importante, porque baseado em experiências de leigos e de pendor devocional, não tanto teológico. Mesmo que centrado na Universidade de Halle e no pensamento de alguns autores, o devocionalismo, a voz dos leigos e as variações regionais acabaram por serem uma “regra”.

ORTODOXIA LUTERANA E PIETISMO

Mas procuremos elementos comuns, neste desenvolvimento do Pietismo enquanto movimento luterano de reforma da própria reforma. Temos que partir da análise ao próprio Luteranismo de base. Afirmando possuir a doutrina mais pura, a mais correcta administração dos sacramentos e uma Igreja nacional estabelecida e bem organizada, o Luteranismo embarcou num sentido de desenvolvimento durante o Século XVII no qual, embora a Bíblia fosse reconhecida como a única autoridade, como a primeira e suprema fonte de conhecimento, o seu conteúdo essencial considerava-se resumido e contido em dogmas definitivos. Daí que esta segurança não foi alterada, porque não se entendia ser necessário. A Igreja considerava que professava um grau de perfeição que dispensava a necessidade de qualquer desenvolvimento posterior, fosse ele interno ou externo.

A única exigência feita aos membros da Igreja, portanto, era o reconhecimento da sua doutrina como a apresentação, autorizada, da revelação divina, o recebimento da palavra pregada e dos sacramentos, bem como a obediência aos mandamentos da vida eclesiástica. Era como que um Cristianismo institucional da Igreja Luterana, algo que esta criticara no Cristianismo que se tornaria depois na Igreja Católica Apostólica Romana na sequência da Reforma Católica que foi definida doutrinal e institucionalmente pelo Concílio de Trento (1545-1563). Esse Luteranismo institucional, nos Séculos XVII e XVIII considerava que permanecia vivo e activo no Cristianismo evangélico. Mas é em oposição a essa afirmação do Cristianismo luterano institucional que o Pietismo se desenhou naqueles séculos. Com efeito, na verdade permitisse esse mesmo Luteranismo cristalizado e institucionalizado em demasia, segundo os primeiros pietistas, definhava cada vez mais na vida espiritual, pelo que o Pietismo enfatizou o dever de lutar pela independência religiosa pessoal e individual e declarou que “religião” é algo totalmente pessoal, além de que o Cristianismo evangélico só estará presente quando e na medida em que se manifeste na autêntica conduta cristã dos crentes.

Mas esta afirmação do direito e da necessidade de emergência e vivência do Cristianismo pessoal não se desenharia como um ataque a qualquer doutrina ou instituição especial ou particular da Igreja Luterana, mas antes definir-se-ia na forma de um protesto contra o que se afirmava ser uma espécie de “absolutismo luterano”. Na complexidade e variedade que acima falámos e à luz deste arrazoado anterior, podemos encontrar aqui um elemento de ligação nos subgrupos pietistas. Com efeito, o Pietismo assumiu muitas fases mas todas elas com base na acentuação de um Cristianismo pessoal. Para Spener e Francke, por exemplo, o cerne da vida religiosa era uma fé firme na Providência. Além disso, o “clero” que era formado em Halle, para direcção dos conventículos e grupos pietistas, colocava a ênfase principal na conversão do indivíduo, na sua experiência pessoal de adesão e mudança de vida.

Outro princípio amplamente difundido, especialmente nos círculos morávios (uma tendência pietista oriunda da actual República Checa), foi um profundo amor por Jesus, que conduziria a um renascimento dos bem conhecidos ideais do misticismo medieval, cristocêntrico e passional, sacrifical e devoto. Aqui surge outro elo de conexão, quando todas as tendências e grupos pietistas encontram um vínculo comum na sua tendência de procurar a realização normal da piedade viva numa experiência perene de intensa emoção religiosa, e de dar um lugar permanente à intensa consciência do pecado e da culpa individuais. Algo que no Século XVII perpassou também muitos meios católicos, na piedade barroca, estribada numa espécie de culpabilização e de consciência de pecado. O Pietismo não era assim tão inovador neste aspecto.

A devoção pietista alcançaria grandes resultados, como temos visto, na medida em que o movimento representou uma justificada reacção contra um exagerado eclesiasticismo do Luteranismo enquanto Igreja. Porém, o Pietismo desconhecia ainda os perigos que se escondiam nesta sua defesa dos direitos individuais….

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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