A missão de Francisco de Castro
É chegada a altura de mencionarmos aqui o nome de António Galvão, capitão de Ternate e dito “Apóstolo das Malucas”, dado o seu fervor na evangelização do espaço geográfico daquilo que é hoje a Indonésia e que nas inexploradas ilhas a montante teria inevitavelmente uma palavra a dizer. Nesse âmbito enviaria, em 1538, um navio comandado por Francisco de Castro com indicações para que fizesse o maior número de cristãos possível, estando nós a assistir aqui a uma tentativa organizada de fixação no novel território, pois Galvão era, além de propagador, homem de comércio com muito sentido de Estado.
Castro ia incumbido de uma simultânea missão política, mercantil e religiosa. Ao chegar à ilha de Mindanau e a outras que descobriu acima dessa, cedo se apercebeu da facilidade em comunicar com aqueles régulos de pensamento aberto e interesses esconsos. Receberiam a água do baptismo seis reis de uma assentada, acompanhados das mulheres, filhos e vassalos, “e o mais deles mandou António Galvão pôr o nome de Ionaes em memória do terceiro que em Portugal reinava, tanto o trazia em sua memória”, escreve o próprio, mencionando-se como se de uma terceira pessoa se tratasse, pois era esse o seu estilo. Este apontamento comprova a existência de um processo de missionação em curso cujos contornos continuam por investigar em toda a sua extensão, e que, no fundo, se inspirava na estratégia antes utilizada no arquipélago indonésio de conversão de reis e rainhas que inevitavelmente levavam à conversão dos súbditos, método de sucesso nalgumas partes da Ásia e noutras, como no Tibete, nem por isso.
Além do proselitismo latente, o texto de Galvão fornece-nos um importante conjunto de apontamentos culturais eivados de exageros e algumas invenções, como era apanágio da época. Refere Galvão suínos que além dos dentes da boca tinham “dois que lhe saiam dos focinhos” e outros tantos “por detrás das orelhas”, e falava do fruto de uma árvore que deixava quem comesse doze horas fora de si, fazendo “coisas de homem sem siso”, não se lembrando de nada ao despertar. Os sintomas indicados remetem-nos para um tipo de planta similar à datura estramónio, presente em várias geografias e cuja origem é asiática.
Lembro-me de em tempos, na aldeia de Talasnal, na Serra da Lousã – hoje polo turístico das massas alternativas bem acomodadas, mas que em tempos alojou algumas famílias “hippies” –, o episódio de um indivíduo que após beber uma infusão de estramónio esteve uma semana a pensar que era um cão.
Além das plantas, existiriam também, no relato de Galvão, “uns cangrejos da terra que quem os comia estava certas horas da mesma maneira”. Há ainda apontamentos de teor antropológico, estes mais fidedignos, como o hábito dos homens dessas ilhas dourarem os dentes e atravessarem “a sua natura” com uma barra de ouro ou de prata “em cujas pontas rebentam umas rosas com que ensanguentam a mulher toda”.
Dissecariam literariamente a missão do enviado Castro os cronistas Castanheda, Couto e João Baptista Lavanha. O primeiro, refere que servira de eficaz íman persuasor a suposta vontade de uns príncipes das Celebes em ter comércio com os portugueses, prometendo que se estes para lá fossem de bom grado se fariam cristãos. Ao ouvir isto, Galvão, esperançoso de “se alargar nela a Fé de Cristo, como para os portugueses fazerem nela seu proveito”, mandaria “um cavaleiro [o mencionado Francisco de Castro], casado, homem muito para isso, a quem deu um regimento que assentasse amizade”. Nas respectivos versões, Couto e Lavanha incluem no séquito de Castro, “para irem em companhia dos macaçás exercitar aquele santo ofício”, dois sacerdotes. Ou seja, iam na companhia de fidalgos da terra recém-convertidos; melhor carta de apresentação era impossível. Para garantir o sucesso da campanha havia que levar “muitas peças e brincos”, previsíveis moeda de troca e presentes.
Partiu Castro de Ternate no mês de Maio e a 26 de Junho estava já em Chedigão, nas Celebes, com o gentio rei dessa terra a cumprir o pacto de amizade local que consistia em ambos se “sangrarem nos braços, e um beber o sangue do outro”. Pouco tempo depois far-se-ia cristão este rei, “muito contra vontade do seu conselho”, e com o nome de Dom Francisco, tendo decorrido a cerimónia de baptismo no navio pois “não quis Francisco de Castro ir a terra”. Acompanhá-lo-ia na decisão a mulher e um filho, três irmãos seus e 130 fidalgos, “e ainda muitos do povo”. Isto nos garante Castanheda.
Couto e Lavanha são mais precisos, ao mencionar a tempestade que os levou a essa latitude norte, “umas ilhas que ainda não eram sabidas”, a norte das de Maluco mais de cem léguas. Chama-se Setigano (Lavanha chama-lhe Satgano) e que certamente corresponderá à pequena ilha de Sarangani, ao largo das Celebes, mesmo em frente à província com o mesmo nome, em Mindanau, visitada anteriormente pelos escapados da expedição de Magalhães. Passado este ponto, Lavanha menciona a cerimónia do sangramento, embora a ignore Couto que, no entanto, nos diz que o rei local pedira a Francisco de Castro que este o visitasse em terra, ao que ele acedeu permanecendo com o rei alguns dias, sempre acompanhado dos dois sacerdotes que iam sondando o monarca até que, “achando-o fácil e doméstico” o converteram, juntamente com “três irmãos seus e suas casas, mulheres e filhos”. Conclui Couto que dada a afluência de gente se converteu naquele dia a maior parte dos moradores daquelas ilhas. Ora, esta versão contradiz a de Castanheda que nos garante ter Castro recusado sair do navio. É frequente este tipo de contradições nas crónicas, o que dificulta a análise dos factos mas abre novas e fascinantes possibilidades. Concordam no número de dias da histórica e pioneira estância, 28, Lavanha e Castanheda, acrescentando-lhe mais três, o que perfaz um mês, Diogo do Couto.
Joaquim Magalhães de Castro