CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXXII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXXII

A Teologia da Libertação – VII

O movimento da Teologia da Libertação foi-se consolidando, apesar de todas as polémicas, sobrevivendo a ditaduras na América do Sul ou à oposição de sectores mais conservadores da Igreja, um pouco por todo o mundo. Hoje a sua importância já não é tão grande como movimento ou como forma de acção, devido à falência de regimes totalitários ou dos regimes marxistas, faltando pois o objecto da luta e a força motriz inspiradora de alguns seguidores.

Mas no plano filosófico e doutrinal, muitos dos propósitos e reivindicações foram-se diluindo na sociedade cristã, não sendo já um exclusivo da Teologia da Libertação mas algo que perpassou o movimento e se tornou próprio do mundo em que vivemos. A Teologia da Libertação como movimento fez parte de um tempo e de uma conjuntura, trabalhou e ajudou a melhor o mundo nesse período, mas hoje quase se podia dizer que se como movimento quase que é desajustado ou mesmo anacrónico, como filosofia é parte da realidade e da estratégia. Sem ideologias, claro, sem radicalismos. Por isso fica sempre a questão: haverá futuro para a Teologia da Libertação, ou apenas um eterno presente…?

UM CAMINHO DIFÍCIL

O Concílio Vaticano II estabeleceu uma reconciliação com a modernidade, sem dúvida, bem como um diálogo com as ciências, afirmou o seu apoio incondicional à dignidade humana e aos Direitos do Homem, focando-se na prioridade a dar aos problemas e às causas mais importantes da Humanidade, tentando articular a sociedade com os valores do Evangelho. Era o caminho para a construção de uma dignidade própria numa sociedade cada vez mais de leigos, bem como a sua consciência da responsabilidade e da opção própria, a criatividade, o amadurecimento das convicções humanistas, enfim, dará vez e a voz à mudança, que se impunha irreversível.

Alguns sectores mais tradicionalistas têm desde sempre desconfiando deste movimento, ou filosofia, criticado até e obstaculizado, por vezes, a sua acção. Muitos viam nesta filosofia um obstáculo à cristianização do mundo, ou seja, sentiam que o passado cristão ficava mais distante e diluído por esta filosofia libertária, a qual, diziam, abria o caminho à secularização e ao laicismo da sociedade, daí ao ateísmo e ao materialismo hedonista e consumista. Criticavam, esses sectores tradicionalistas, a visão de modernidade da Teologia da Libertação, pois nela a Igreja perdia hegemonia e preponderância, resumindo-se gradualmente a uma esfera privada. O passado era o zénite para esses sectores conservadores, que combatiam este movimento, por conseguinte. Era preciso recristianizar a Europa, mas sem a Teologia da Libertação: antes sim com o passado, para muitos com um “passado” mais pré-conciliar, com uma Igreja centralizada, clerical, compacta, uniforme e obediente, anti-moderna, enfim.

Por isso, escreveu o teólogo belga Edward Schillebeeckx, OP(1914-2009): “O Concílio Vaticano II consagrou os novos valores modernos da democracia, da tolerância, da liberdade. Todas as grandes ideias da revolução americana e francesa, combatidas por gerações de Papas, todos os valores democráticos foram aceites pelo Concílio… Existe agora a tendência a ser-se contra a modernidade, considerada como uma espécie de anti-Cristo. O Papa actual parece negar a modernidade com o seu projecto de re-evangelizar a Europa: é necessário – diz o Papa – regressar à antiga Europa de Cirilo e Metódio, santos eslavos, e de São Bento. O retorno ao Catolicismo do primeiro milénio é, para João Paulo II, o grande desafio. No segundo milénio, a Europa decaiu e, com ela, decaiu toda a cultura ocidental. Para re-evangelizar a Europa é necessário superar a modernidade e todos os valores modernos e regressar ao primeiro milénio… É a Cristandade pré-moderna, agrícola, não crítica, a que, segundo o pensamento do Papa, é o modelo da Cristandade”.

Schillebeeckx, um dos maiores teólogos contemporâneos, personalizava na figura do Papa a liderança do movimento contra a modernidade, na linha de outros teólogos católicos, criticando esse retorno ao passado pelo facto de que os valores modernos de liberdade de consciência, de religião, de tolerância, não eram os valores desse primeiro milénio a que se pretendia regressar. Sem ser activista da Teologia da Libertação, Schillebeeckx é um dos que mais lutou por separar as águas e clarificar o tempo em que viveu.

Como outro teólogos independentes, muitos foram os que criticaram a restauração da Igreja através do recurso a instrumentos de poder ou movimentos fortes e incondicionais, ao invés de a modernizar e actualizar. Esse pretenso retorno foi classificado pelo grande teólogo Karl Rhaner SJ(1904-1984) como “uma longa noite de Inverno” na Igreja. Neste “clima de regresso” era difícil encontrar estruturas na Igreja que predispusessem livremente os fiéis para a confiança, o respeito e o diálogo, retorquiam os Teólogos da Libertação, dificuldades essas que afastaram muitos crentes das igrejas e das celebrações. Hans Küng (nascido em 1928), teólogo católico suíço – forma com os anteriores, entre outros, o grupo dos teólogos mais influentes da Igreja do século XX –, foi dos que proclamou mais vivamente a sua crítica a esse retorno aos antípodas do que defendia a Teologia da Libertação: “Requer-se uma mudança de rumo na Igreja e na teologia: tem que se abandonar decididamente a imagem do mundo medieval e aceitar consequentemente a imagem moderna do mundo, o que, para a mesma teologia, trará com consequência o caminho para um novo paradigma”.

Mas a crítica e luta contra a Teologia da Libertação alcançou a Igreja Universal de forma plena, a todos os níveis: sínodos, conferências episcopais, reuniões do episcopado latino-americano, nas congregações religiosas, bispos de todo o mundo, teólogos, no ensino e investigação, nas publicações, nas revistas, etc. Da mesma forma que também a Teologia da Libertação se propagou nos anos 70 e 80, nesta última década começava a sua desconstrução por parte dos seus críticos. É importante referir, todavia, que a Igreja Católica nunca condenou formal e definitivamente a Teologia da Libertação, mesmo nos dois documentos já aqui referidos (da Congregação para a Doutrina da Fé, sob a direcção do cardeal Ratzinger): “Libertatis nuntius” (“Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”), em 1984, e “Libertatis Conscientia”, em 1986. Defende-se o compromisso radical para com os pobres, mas sem ideologias (marxista e outras) incompatíveis com a Doutrina Católica.

Alguns teólogos consideram, porém, que não houve da parte da Igreja críticas ou repressão ao movimento, mas sim um intento de correcção de certos exageros e derivas de alguns teólogos. Há até um incentivo, de João Paulo II (em carta aos bispos brasileiros, datada de 1986) da Teologia da Libertação, “de modo homogéneo e não heterogéneo com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à Doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial e não excludente nem exclusivo para com os pobres”.

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

 

 

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