O pacto de sangue de Canha Pinto
Falemos agora da primeira viagem portuguesa a Mindanau devidamente documentada. Aconteceu em 1535 e teve como protagonista João de Canha Pinto, que às vezes vê o nome truncado consoante a pena de quem relata os factos por ele vividos. Ora, a viagem, apadrinhada pelo capitão das Malucas, Pero de Ataíde, traduz na perfeição as dificuldades sentidas pelos portugueses no seu pioneiro contacto com as populações locais.
Certamente como parte de uma estratégia de defesa, foi sendo fomentado, entre os diversos povos desse pequeno universo de ilhas, o mito de que haveria ouro em abundância nas congéneres mais setentrionais (a norte de Mindanau), e também a sul, nas Celebes, esperando que os portugueses para lá desviassem pessoas e recursos, deixando assim aberto um flanco franqueador de actos de resistência capazes de afastar de vez da região tão indesejada presença. Diz-nos a esse respeito Lopes de Castanheda: “Fizeram saber a Tristão de Ataíde que eram chegados a Geilolo certas coracoras que vinham da ilha de Mindanao, em que acharam muito ouro, com o que ele se provou a achar essa ilha e mandou a isso um João da Canha Pinto em um navio que a foi descobrir”. Acrescenta o cronista que o navegador prosseguiu depois para uma outra ilha – “que estava ao mar desta” – chamada Siargao (a norte de Mindanau), e como tinha necessidade de fazer aguada tratou logo de entender-se com a gente daquela terra, “sangrando-se a ele e ao rei e bebendo um o sangue do outro”, pois era dessa forma que se estabeleciam os acordos de paz naquelas latitudes.
Tal era o confiança no pacto que, como lembra Castanheda, “havendo-as os da terra por muito firme conversavam com os portugueses e iam ao seu navio sem receio”. Só que o valores pelos quais se regia o capitão Canha eram outros, ou melhor dizendo, não existiam, e assim, aproveitando-se da confiança dos locais, “deitou um dia a mão de quantos da terra estavam no navio” para os levar cativos. Mas houve quem fugisse e de pronto informasse o rei da traição dos portugueses. Aquele, como é natural, logo desenterrou o machado de guerra, “pondo a sua armada e a sua gente no mar”, disposto a apossar-se dos navios intrusos. Foram tantas as flechadas e arremessos e tamanhas as gritas, que o assustado João de Canha “mandou cortar as amarras, e dar às velas”. Tão depressa teve de partir que se viu obrigado a atirar borda fora toda a artilharia do navio, para assim aligeirar a carga; até porque entretanto se manifestara poderosa tempestade. Vendo que não o podiam alcançar, regressaram a casa os mouros locais, passando a partir daí a dar ouvidos a todos as histórias de má-fama que nas ilhas Malucas contavam a respeito dos portugueses.
Chegava entretanto Canha a Mindanau; ao dar-se conta da ausência de sinais do tão ansiado ouro, regressou a Ternate. Nota ainda o cronista, “por aquele ano ser monção de cravo”, não quis Tristão de Ataíde mandar mais ninguém às Celebes, “porque andava muito ocupado em carregar navios” com essa especiaria. A respeito do ritualizado pacto de amizade, o testemunho de Diogo do Couto chega a ser poético: “Beberam os que faziam a amizade o sangue um do outro, como penhor do amor que se haviam de ter, porque dizem que assim mete cada um em si a alma do outro”. Quanto ao reprovável acto de Canha, dá largas Couto, como sempre, ao seu espírito crítico: “Pelo pecado que cometeram, em violarem a antiga lei do hospício; cousa tão feia e aborrecida, ainda que entre tão bárbaros como estes”.
A detalhada descrição de Couto dá-nos conta que o grau de disseminação e contacto com este povos era já assinalável. Nas palavras de José Manuel Garcia, “este sistema de trocas escorava-se em alianças políticas com os reinos locais, convocando mesmo os sistemas de alianças e amizades tradicionais especializados pela sociedade filipina”. Quanto ao não assumir de compromisso por parte de João de Canha Pinto, moral à parte, explica-se pela necessidade em obter mão-de-obra escrava, “recurso económico fundamental para os portugueses desta região”.
O próximo avistamento da ilha de Siargao dar-se-ia em 1538, por Francisco de Castro (sobre ele falaremos mais adiante, detalhadamente), e em 1543 pelo espanhol Bernardo de la Torre, a bordo da carraca San Juan de Letrán, enviada a encontrar uma rota de regresso a Nova Espanha, a mando do capitão Ruy López de Villalobos, tendo este seguido para as Malucas onde, em confronto com os portugueses, acabaria prisioneiro, vindo a morrer pouco depois de febre tropical ou de “coração despedaçado”, como afirmaram os nossos, em Amboíno. De la Torre chamou a Siargao “Isla de las Palmas”. É hoje esta ilha procurada para a prática de “surf” e as suas ondas de eleição justificam uma competição anual dessa modalidade patrocinada pelas autoridades provinciais. A mais afamada de todas, a Cloud 9, seria descoberta, em finais da década de 1980, pelo fotógrafo norte-americano Seaton Callahan, tendo feito a capa da revista Surferonze anos depois.
Siargao serviria de esconderijo a um outro norte-americano, que à paixão do “surf” juntava um ilícito e profícuo tráfico de droga. Mike Boyum chegou à ilha em finais de Dezembro de 1988 e ali morreria, na sequência de um “jejum espiritual de limpeza” com a duração recorde de 44 dias, em Abril do ano seguinte.
Joaquim Magalhães de Castro