Os Mártires da Argélia
A Argélia, como já aqui vimos, é uma das terras de missão que mais martírios conheceu nos tempos recentes: dezanove, entre os quais os sete monges trapistas de Thibirine e o bispo de Oran, D. Pierre de Claverie,OP. Estes dezanove mártires (doze religiosos, um bispo e seis religiosas) foram beatificados a 8 de Dezembro de 2018, na basílica de Santa Cruz, em Oran, na Argélia.
Os anos 90 foram terríveis na Argélia. Foram para todos, muçulmanos, cristãos, para todos. Chamam-lhe a “década negra” (“decennie noire”). Porque se caracteriza por ter sido uma década de terrorismo e morte, que se iniciou em 1991 e se concluiu em 2002. Ficou marcada por atentados e combates cruéis entre as forças armadas do Governo (instituído depois de um golpe de Estado) e os fundamentalistas islâmicos (que tinham vencido as eleições, mas foram impedidos de tomar o poder), nos quais morreram, pelo menos, 150 mil pessoas.
A crueldade atingiu foros de terror, em particular para os estrangeiros, para os não muçulmanos e para todos os que não queriam viver civilmente segundo uma lei (a Sharia, lei fundamental islâmica) que trazia o medo, o sangue e a morte. Muitas mulheres, muçulmanas, pereceram, degoladas, depois de estropiadas, por se vestirem de forma ocidental, por trabalharem e por viverem de forma diferente, sem os preceitos religiosos a impor o quotidiano. Mas também os cristãos, nomeadamente os estrangeiros, principalmente os religiosos, estavam na mira dos fundamentalistas. E não seriam poupados na vertigem do terror. Mesmo fazendo o bem a todos, sem olhar a religião nem etnia, mesmo vivendo pacificamente e procurando conhecer o Islão e criar relações e simbiose, mesmo assim, o vento frio da morte varreu e aterrorizou muitos deles, obrigando alguns a fugir. Mas muitos quiseram ficar, manter o seu trabalho e a sua forma de vida solidária, na Argélia e com o povo.
PROJECTO DE VIDA: AMOR
Os religiosos escolheram viver ao lado dos argelinos, simplesmente para ficar ao lado deles, cultivar o diálogo e oferecer um sinal de convivência pacífica, apesar das atrocidades diárias e das enormes dificuldades. Muitos optaram por ficar junto do povo argelino, das comunidades onde estavam em missão, estimulados pelo propósito da paz, do bem e da solidariedade. Assim, de entre os que não abandonaram o País nos difíceis anos de terrorismo, dezanove religiosos, religiosas, sacerdotes e consagrados cairiam no patíbulo do martírio, misturando o seu sangue com o sangue de muitos milhares de argelinos que foram vítimas também da crueza e da maldade da guerra.
Os dezanove mártires eram doze religiosos, um bispo (da Ordem dos Frades pregadores, ou Dominicanos) e seis religiosas. Foram beatificados a 8 de Dezembro de 2018, como já referimos. Soma-se a este grupo o jovem motorista de D. Pierre Claverie, o argelino Mohammed Bouchikhi, de 21 anos.
Os Beatos Mártires da Argélia são: o irmão marista Henri Vergès e irmã Paul-Hélène Saint-Raymond (Petites-Soeurs de l’Assomption), ambos franceses, mortos a 8 Maio de 1994 em Argel; as irmãs agostinianas missionárias Esther Paniagua Alonso e Caridad Alvarez Martin, espanholas, mortas a 23 Outubro de 1994 em Argel, em plena missa dominical; os padres brancos (Missionários de África) Jean Chevillard, Christian Chessel, Alain Dieulangard, franceses, e Charles Deckers, belga, todos sacerdotes e mortos a 27 Dezembro de 1994, em Tizi-Ouzou; as irmãs francesas da Congregação de Nossa Senhora dos Apóstolos Angèle-Marie (Jeanne Littlejohn) e Bibiane (Denise Leclercq), mortas a 3 Setembro de 1995, em Argel; a irmã Odette Prévost, das Petites Soeurs du Sacré-Coeur de Charles de Foucauld, morta a 10 Novembro de 1995, em Argel; o bispo de Oran, D. Pierre Claverie, morto a 1 Agosto de 1996, mais o motorista, Mohammed Bouchikhi (21 anos, muçulmano), em Oran, à porta da residência episcopal, regressados nessa noite, de Thibirine; e sete monges trapistas de Notre-Deame de l’Atlas, em Tibhirine (oficialmente mortos a 21 Maio de 1996): D. Christian de Chergé, sacerdote, prior do mosteiro, o irmão Luc Dochier (médico), o padre Christophe Lebreton, o irmão Michel Fleury, o padre Bruno Lemarchand (em estadia em Thibirine para reunião capitular e eleição do prior, pois era proveniente do priorado dependente de Notre-Dame de Atlas Kasbah Myirem, em Midelt, Marrocos), o padre Célestin Ringeard e o irmão Paul Favre-Miville.
Todos estes acontecimentos foram terríveis. Mortos na missa, mortos na biblioteca ou no local de trabalho, mortos na rua, nos montes, a tiro, degolados ou à bomba, todos estes dezanove seres humanos a única coisa que tinham feito foi servir as comunidades em que estavam inseridos. O mais fácil teria sido fugir, ir embora, mas optaram por ficar. Porque a sua vida era com aqueles que serviam, sem proselitismos ou imposições. Nenhum queria ser mártir, todos doaram a sua vida pelo Outro, para mitigar o sofrimento e para viverem em comunhão, em fraternidade, fosse qual fosse o credo daqueles a quem serviam. Queriam que a sua vida fosse útil, em doação, em oferta genuína, em exemplo simples e sem mais do que serem um mais, mas em paz e em trabalho.
Destaco aqui os monges trapistas de Thibirine. Por tudo o que fizeram, no lugar onde estavam, pelo relacionamento amigável e cooperante, simbiótico, que tinham com o povo que vivia na aldeia abaixo do mosteiro. Trataram de todos, ensinaram a trabalhar a terra, a vender os seus produtos, cujos rendimentos partilhavam entre todos, cristãos e muçulmanos. Frei Lux, o médico, era o verdadeiro “João Semana”, todo ele doação em caridade plena, tendo dedicado toda a sua existência a servir quem o procurava. Até os seus carrascos que antes o procuraram ele tratou… E a paga foi o que aconteceu. Mas Luc, como todos os seus irmãos, optou por ficar, por continuar a sua marcha de vida, naquele lugar de feridas abertas, não fazendo sentido partir.
Deixamos aqui o testamento profético de D. Christian, escrito tempos antes dos acontecimentos que o levaram ao martírio, um texto intenso e pleno, visionário:
“Se me acontecer um dia – e poderia ser hoje – de ser vítima do terrorismo que agora parece querer engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se lembrassem que a minha vida foi ‘doada’ a Deus e a este país. Gostaria que aceitassem que o único Senhor de cada vida não poderia ser estranho a essa partida brutal. E que orassem por mim: como ser digno de tal oferta? Que eles soubessem associar essa morte com tantas outras igualmente violentas, mas esquecidas na indiferença do anonimato. A minha vida não tem mais valor que outra. E, também, não tem menos. (…) Eu vivi tempo suficiente para saber que eu compartilho do mal que parece, infelizmente, prevalecer no mundo, e até mesmo daquele que poderia atingir-me cegamente (…). Amém! Inch’Allah.”
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa