Templos que são fortalezas
Praticamente colado a Shitthaung, mais exactamente ao canto noroeste, temos o pagode de Andaw Thein, o “santuário do dente”, assim designado por alegadamente se guardar nele um pedaço de dente de Gautama, relíquia querida ao credo budista. Construído inicialmente pelo rei Thazata como sala de ordenação entre 1515 e 1521, Andaw Thein seria restaurado por Min Bin entre 1534 e 1542; e, mais tarde, em 1598, transformado em templo pelo rei Min Razagyi a fim de abrigar a tal lembrança dental trazida do Ceilão no decurso de uma peregrinação que afinal não é do Ceilão coisa nenhuma e tão pouco pertence à cavidade bocal de Gautama, mas sim à de um dos seus inúmeros bodhisattvas. Mas adiante…
Eis-me perante mais uma estrutura fortificada de formato octogonal com orifícios quadrangulares de dupla função estando sobre ela assente a estupa central e oito estupas satélites. Rodeiam este santuário-fortaleza catorze zedis com entrada própria e no seu interior deparamos apenas com simples estátuas de Buda. Enfim, mais do mesmo. Entro, por isso, sem grandes expectativas numa das quatro antecâmaras que conduzem ao cerne do ádito e sou agradavelmente surpreendido pelo o que ali vejo a acompanhar os oito budas assentados noutros tantos tipos de tronos arracaneses, e ainda dois outros Gautamas em modo zen, com a distintiva túnica apertada sobre o peito, recolhidos aos respectivos nichos. Comecemos pelo tecto. Por que será que estes arcos abaulados me trazem de imediato à memória a cisterna manuelina de Mazagão? Ou o tecto da “Igreja Portuguesa” no centro histórico de Safim? Ou ainda, e recuando à origem, o tecto da icónica capela-mor da igreja-mosteiro de São Marcos da Universidade de Coimbra? Ou o da igreja de Santa Cruz? Ou até o dos claustros da Sé Velha? Ou… bem podia continuar a elencar exemplos, pois abundam. Só lá faltam mesmo as rosáceas ou as cruzes de Cristo incrustadas nas intersecções dos arcos segmentados, o que em terra budista, a concretizar-se, pelo menos no que se refere à cruz, seria abuso da confiança. A semelhança com os exemplos atrás citados é inegável, se bem que muito mais tosco e simplista o acabamento no caso arracanês, pois não passa de remota “contrafacção”. Mas não é só o tecto que aqui se trata. Também os ornatos, os fustes e os capitéis enunciadoras dos relicários evocam coisa já vista. Por exemplo, a magnífica entrada da igreja de São Pedro, em Vila Franca do Campo, na ilha açoriana de São Miguel.
De Andaw Thein dirijo-me directamente à outra estrela da companhia, o templo de Htukkant Thein, em Português “sala de ordenação das vigas cruzadas”, o que diz bastante do arcabouço em questão. Implantado em terreno elevado e de entrada única, o Htukkant Thein é, de facto, o protótipo de um templo-fortaleza por excelência e aquele que, observado do exterior, denota mais influência do engenho militar arquitectónico português. A quebrar a continuidade do longo alicerce murado exterior feito de fiadas de tijoleira e alguns canos de escoamento “boca de crocodilo”, íngreme escadaria dá acesso a um períbolo que antecede a muralha propriamente dita: robusta estrutura quadrangular constituída por blocos de arenito encimados por camadas de tijolos e com pequenas janelas em toda a sua extensão, ao nível superior e ao nível inferior, embora no lado oeste o formato seja semicircular.
Construído em 1571 por ordem do rei Min Phalaung, este imponente templo possui sistemas próprios de iluminação, sonorização e ventilação e uma labiríntica rede de túneis ogivais que em espiral conduzem a uma antecâmara, outrora utilizada pelos monges para meditar e orar. Ali deparo com um vendedor sentado em frente a uma bacia de plástico com flores de lótus, água engarrafada e postais ilustrados. Mesmo ao lado, uns lanços de escada dão acesso a um pequeníssimo santuário onde se senta, numa arredondada base de dois lótus invertidos, o tradicional Buda dourado. Mas tempos houve em que neste verdadeiro epicentro repousou uma bem mais distinta e vistosa representação do Iluminado, “encastoada com nove diferentes metais preciosos”, desconhecendo-se hoje o seu paradeiro. Talvez para compensar o fausto de antanho, foram colocadas em pedestais à entrada do relicário duas réplicas do Buda, devidamente protegidos pelos respectivos pára-sóis, e acrescentemos a tudo isto as incontáveis estatuetas votivas dispostas nas saliências ou depressões das paredes. Numa delas vejo pintados os nomes dos alemães Brigit e Frank, visitas de 2011, e fico na dúvida se é identificação da oferta ou apenas mais um desses imbecis grafitos tão comuns nas paredes, esculturas e até pinturas de muito do património espalhado pelo mundo.
Na base exterior da estupa central, com uma coroa em forma de cogumelo, rodeada por quatro estupas menores, foi concebida uma janela para que ao amanhecer os raios do sol brilhassem directamente na imagem principal de Buda. Não o posso comprovar, o dia já vai longo; terei oportunidade de, no regresso, recuar no tempo e pôr à prova a eficácia do sistema de iluminação. Isto, graças a uma providencial falha eléctrica que me permite fotografar os objectos iluminados apenas pela luz natural, já que as enormes lajes por baixo das janelas, apesar da sua intenção utilitária, há séculos não suportam uma única lanterna.
Joaquim Magalhães de Castro