CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 20

CRISTÃOS EM TERRAS DE ARRACÃO – 20

O prestígio e riqueza de Diogo Soares

Bayinnaung terá como objectivo reconstruir o outrora poderoso reino da Birmânia, e fá-lo-á a partir do porto de Dala (hoje irrisório pedaço de terra a sul de Rangum), com tropas “poucas, mas fiéis”, entre os quais dois irmãos mais novos. Contava ainda ao seu serviço com Binnya Dala, conselheiro confiável e o melhor dos seus comandantes. Eram necessárias, porém, armas de fogo e peritos no seu uso. É claro que já adivinharam a quem se dirigiu o novel soberano birmanês: Diogo Soares de Melo, cujo comportamento na campanha siamesa impressionara de sobremaneira Bayinnaung, seria o mercenário escolhido.

Ao capitão Soares, e às quatro dezenas de portugueses às suas ordens, foi confiado o exército que marchou até Ayutthaya onde provisoriamente o travaram três navios de guerra portugueses e as baterias de artilharia da cidade siamesa. Porém, a 7 de Fevereiro de 1564 cede a resistência e, uma semana depois, rende-se o rei Maha Chakkraphat. Bayinnaung apodera-se dos quatro elefantes brancos do paço real, entre outros valiosos itens, e envia o monarca deposto para Pegu, nomeando o filho daquele como “rei vassalo”. Deixa na cidade finalmente conquistada uma guarnição de três mil homens.

Seria de tal forma célere a expansão birmanesa que em 1580 – arvorando agora o título de “governante universal” – Bayinnaung não só subjugara os países que haviam chamado a sua atenção nas últimas três décadas, como obtivera o respeito dos Estados vizinhos. E em vez de descansar, voltou a olhar para o Arracão, o reino que sem sucesso e às ordens de Tabin Shwehti tentara conquistar entre 1545 e 1547.

A 15 de Outubro de 1580 seguiria para Sandoway uma força naval de oito mil soldados em duzentos navios e aí permaneceria durante um ano, pois a frágil saúde do rei não permitiu o avanço até à capital Mrauk-U. Adicionais forças terrestres e navais (29 mil homens, mil e 600 cavalos, 120 elefantes) seriam enviadas a 28 de Agosto de 1581, em preparação para uma próxima campanha durante a estação estival, mas Bayinnaung acabaria por morrer seis semanas depois, obrigando o poderoso contingente a bater em retirada.

Pode dizer-se que Bayinnaung iniciou o reinado na condição de “rei sem reino” e encerrou-o como “imperador sem império”, conquanto conquistava territórios não para os colonizar mas sim para obter a lealdade dos seus governantes. Permanecessem fiéis a ele, podiam os reis e senhores dos territórios submetidos manter o estatuto de sempre. Nada de novo. Bayinnaung limitava-se a seguir o modelo administrativo de “políticas solares” do Sudeste Asiático: o rei supremo governava o núcleo enquanto vice-reis autónomos e governadores controlavam, de facto, a administração e o quotidiano dos súbditos. Na verdade, o “Rei dos Reis” geria apenas Pegu e o país mon, delegando o resto do império aos vassalos de Ava, Prome, Lan Xang (Laos), Martavão, Sião Toungoo e Lan Na (Norte da Tailândia), este o mais importante de todos e onde Bayinnaung passava muito do seu tempo, ao ponto de alguns tailandeses o terem como um dos seus monarcas.

Os portugueses chamavam ao Pegu de então “a monarquia mais poderosa da Ásia”, suplantada apenas pela China. Abrangia partes de Manipur e estendia as suas fronteiras até ao Camboja, Arracão e Yunnan. Foi certamente o maior império no Sudeste da Ásia, fruto de conquistas militares cujo sucesso se explica pela tradição marcial de Toungoo, pelas armas de fogo portuguesas – superiores em precisão, segurança, peso balístico e rapidez de tiro, se comparadas com as congéneres fabricadas na Ásia – e um extraordinário corpo de mercenários estrangeiros.

Diogo Soares de Melo, também conhecido como Diogo Soares de Albergaria ou simplesmente pela sua alcunha “O Galego”, foi, sem dúvida, o mais notório de todos. Na Índia desde 1538, era já reputado pirata e assassino, daí a voz de prisão ordenada pelo governador Estêvão da Gama, pena essa anulada depois pelo sucessor Martim Afonso de Sousa, amigo de Soares. Às ordens de Sousa, o dito “Galego” comandou várias e atribuladas expedições no Índico… Em 1543 vê-lo-emos em Madagáscar encarregado de investigar o paradeiro do irmão de Sousa, ali naufragado, tendo o facínora regressado esse mesmo ano a Cochim sem as requeridas informações mas com muita prata e um substancial lote de escravos…

Antsiranana, cidade costeira no norte da ilha malagaxe, era conhecida até 1975 como cidade Diego Suarez; atribuído seria esse mesmo nome (corruptela espanhola de Diogo Soares) à bela baía defronte à cidade. Após o navio onde viajava ter sofrido violenta tempestade, Soares arriba a Malaca em 1547, e de lá parte à aventura, como tantos outros, disposto a vender os seus serviços de homem de armas. Recebe-o de bom grado Tabin Shwehti que faz dele rapidamente um homem rico – contava Soares com uma pensão de duzentos mil ducados anuais e um imenso património em joias e outros objectos de valor –, tratava-o com um irmão, honra oferecida a muitos poucos, e lhe ofereceu o cargo de governador de Pegu. Foi, sem dúvida, um dos generais mais influentes do exército birmanês, estratega mor (juntamente com um engenheiro grego) nas insistentes tentativas de tomada da cidade da Ayutthaya. Fernão Mendes Pinto relata-nos pormenorizadamente essa operação militar. Diz-nos que os mercenários turcos, desejosos de mostrar serviço e obter as prebendas daí resultantes solicitarem ao rei a dianteira e este, após consultar Diogo Soares, anuiu.

Apesar da actividade mercenária, Soares continuava a ser português; tudo o que pudesse fazer para enfraquecer o turco, o nosso grande rival, tanto em terra como no mar, fá-lo-ia. Como escreve Mendes Pinto, Diogo Soares “desejoso de os ver apoucados, lhes dava sempre estes lugares mais perigosos”.

Joaquim Magalhães de Castro

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