Costa da Memória

Ceuta versus Macau

A reivindicação de uma cristandade antiga em Ceuta foi o argumento de peso que levou o “cruzado” D. Henrique a mover mundos e fundos para retomar essas terras às sucessivas dinastias muçulmanas sucessórias ao Cristianismo. Com a ajuda, claro, de uma pragmática burguesia nascente que via no norte de África uma fonte de novos mercados. Mas antes da retomada do Infante, tentativas houve, insanas, da parte de monges franciscanos espanhóis que acabariam transformados em mártires.

E se no estertor do mundo medieval eram o ouro e o espírito de cruzada (bem expresso no mito do reino do Preste João) os motores dos visionários e tresloucados que ficaram para a história, a mim movia-me, acima de tudo, esta mania de me sentir feliz sentindo-me estranho em terra alheia; mas também a consciência da necessidade de resgate daquilo que permanece – por mais desenquadrado que o termo possa aqui parecer – e nunca é apenas pedras e algumas palavras como alguns querem fazer acreditar, passando distraidamente pelos locais onde fomos ficando ao longo dos séculos.

O local onde foi descoberta, em meados dos anos 70 do século passado, a basílica tardio-romana, seria transformado num moderno museu subterrâneo para onde foram transferidas cisternas utilizadas pelos romanos para a salga do peixe. Essa actividade era fundamental numa costa com abundância de pescado graças às fortes correntes marítimas e a esse encontro entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Ali e no museu municipal da cidade, sede do Centro de Estudos Ceutis (em cujo catálogo de publicações se contavam obras de autores portugueses), deparei com inúmeras ânforas e despojos de navios naufragados ao longo dos tempos no movimentado corredor marítimo.

São muitas as similaridades entre Ceuta e Macau. O jogo é apenas uma delas. Na Casa dos Dragões, interessante projecto de um arquitecto valenciano do século XIX, funcionou o primeiro estabelecimento de jogos de fortuna e azar da cidade: o Casino Africano. A jogatina desenrola-se actualmente no interior de um forte, parte integrante de um parque temático idealizado por reputado artista plástico. Poderia falar ainda das sete colinas, da península, da exiguidade do território, da multiculturalidade, da simbologia lusitana, das ligações marítimas, da areia preta da praia, da memória de Camões, etc.

A manchete dos jornais do dia em que decidi partir de Ceuta anunciava a primeira visita à cidade dos reis de Espanha, o que não deixaria certamente de levantar alguma celeuma. A presença de três enclaves espanhóis no continente africano (Ceuta, Melilla e as ilhas Chafarinas) continuava a deixar algum amargor de boca nas relações hispano-marroquinas.

Senti de imediato o Marrocos genuíno assim que entrei no autocarro número 7 que me conduziu à fronteira, rodeado por mulheres muçulmanas conversando animadamente, sentadas nos joelhos umas e de outras, ou até nas escadas, à falta de melhor lugar.

Tudo facilidades no lado espanhol da fronteira. Indivíduos munidos de formulários de entrada em Marrocos faziam-se à gorjeta mesmo nas barbas dos polícias espanhóis, aparentemente pouco interessados em quem saía da cidade. Apenas os que entravam mereciam a sua cuidada atenção. No lado de lá, aguardavam-nos os patuscos polícias marroquinos – enfiados em uniformes alguns números acima do tamanho – e uns quantos desses “empreendedores” oferecendo-se para ajudar a preencher os formulários, como se isso fosse árdua tarefa.

Cumpridas as formalidades, o recém-chegado tinha, como único e exclusivo meio de transporte público para Tetuão ou Tânger, uma frota de táxis colectivos, invariavelmente modelos antigos de automóveis Mercedes Benz.

«– Há menos de um ano tudo isto não passava de um lamaçal». A observação era da Isabel, artista plástica que trocara a região de Cascais pelo interior profundo de Abrantes, e visita regular a Marrocos, pois aí residia o namorado Hassan, berbere do Sul. O cenário: a fronteira marroquina de Ceuta.

Isabel foi o segundo estrangeiro com quem contactei nesse início de viagem. Curiosamente, o primeiro fora outro português, numa breve troca de palavras em busca de informações no vão de escada de uma das pensões inflacionadas de Ceuta. Um facto digno de registo, pois raramente me cruzo com compatriotas nas minhas deambulações. É certo que Marrocos fica mesmo ao lado, mas, mesmo assim, saliento o facto com agrado. Enquanto aguardava a chegada do namorado, Isabel, muito naturalmente, lançou o repto: «– Vamos para Chefchouen. Podes acompanhar-nos, se quiseres».

Chefchouen é destino obrigatório de todos os visitantes além-Gibraltar, sobretudo os apreciadores de umas boas cachimbadas, não propriamente de tabaco. Por mero acaso, integrara-a no meu roteiro de viagem à última hora. Não pelas cachimbadas, mas devido a uma famosa ponte construída por cativos portugueses no século XVI. Obtivera a informação em Lisboa, um dia antes da partida, junto de um especialista nessas coisas de fortalezas e outras pedras. Por isso o convite da Isabel veio mesmo a calhar. Até porque – confesso – não me apetecia nada enfrentar um desses transportes públicos do tipo aperta-para-lá-que-dá-para-mais-um, o único disponível a partir da fronteira. Adiei, portanto, muito agradado, a desconfortável realidade que se adivinhava, segura e firme como o destino, nas semanas seguintes, e o banco de trás do velhinho Toyota da amiga Isabel soube-me que nem um sofá de paxá.

Joaquim Magalhães de Castro

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