As dunas de Merzouga
O panorama servia na perfeição para o empreiteiro andaluz Alfonso e sus colegas de vacaciones, que todas as noites se estendiam nos sofás depois do cuscuz e das bananas servidas como sobremesa, para fumarem kif, cachimbo atrás de cachimbo, enquanto a malta do Ali ia buscar os djembês e as castanholas de metal habitualmente utilizadas pelos mendigos errantes e que, neste caso, serviam para entreter estrangeiro de hotel cashbá, por norma alheio à realidade local.
Bem mais interessante seria com certeza a estada na aldeia de Merzouga, aos pés da grande duna. Aí, os preços seriam mais marroquinos e poderia escolher o tasco onde comer, não ficando sujeito a uma ditadura chamada “pensão completa”. Tão-pouco era obrigado a ouvir os relatos das experiências radicais no deserto; fossem elas moer o traseiro no lombo de um dromedário, acampar nas dunas ali perto, mas a fazer de conta que se está perdido no meio do Sara, ou devassar essas mesmas dunas com os rodados das motos de crosse ou das moto-a-quatro, devidamente equipados com fatos anti-choque, pois as quedas podem ser dolorosas. Dolorosas e caras, já que o aluguer dos veículos ficava por cinquenta euros à hora. Fotos comprovativas do radicalismo dessa actividade estavam expostas nas paredes e nos álbuns postos à disposição do hóspede.
Claro que eram possíveis caminhadas solitárias, mas raramente seriam de silêncio, pois ouviam-se com regularidade os motores ao longe, e, por isso mesmo, havia que ter muito cuidado, pois para lá da crista da próxima duna laranja bem podia surgir, disparado, um rodado mortífero. Ou então um berbere de turbante azul capaz de se desviar do seu caminho para mostrar ao estrangeiro, possível comprador, os anéis, os colares, os fósseis ou os tais fragmentos de meteoritos, que os cientistas pagam a bom preço.
As dunas alaranjadas – a razão primordial desta viagem tão a sul – são, de facto, extraordinárias. Mas para as ver no seu estado autêntico, só mesmo indo ao Sara profundo, à Argélia, ou então esperar por uma tempestade que apague as pegadas e as marcas dos pneus e devolva à crista dessas montanhas de areia finíssima o seu vinco original.
«– Quando chove, ficam cobertas de pequenos tufos de ervas. É assim, do dia para a noite, como num passe de magia», dizia-me o tuaregue Hiba, retirando do dorso de um dos dromedários a tenda onde pernoitariam os turistas alemães que tinham alugado os seus serviços.
«– Devem chegar daqui a uma ou duas horas, acompanhados do respectivo guia».
É do conhecimento geral que um dia Merzouga desaparecerá, submergida por um desses ergs que avançam sub-repticiamente, milímetro a milímetro. Mas até lá, muitas décadas, séculos talvez, terão de passar.
«– Os velhos destas aldeias lembram-se de as ver sempre no mesmo sítio», sossegava-me Hiba, como que a adivinhar-me os pensamentos.
Valeu a pena a inesperada viagem ao Sul, não só pelas panorâmicas desfrutadas, mas sobretudo pelo quase incomodativo silêncio do deserto e pelas observações da Via Láctea, que ali se avista em toda a sua extensão, pois, não esqueçamos, apesar de estarmos às portas do Sara, continuávamos acima dos mil metros.
Feito este intervalo, regressei a Chefchouen, pronto a retomar a costa, a minha rota inicial. Convinha não me desviar muito dela, pois não faltavam distracções. Marrocos, em termos de riqueza cultural e paisagística, é assim uma espécie de Ásia em África.
Há uns capítulos atrás, antes de involuntariamente me embrenhar no Marrocos profundo, deixei o exército comandado pelo infante D. Henrique alguns quilómetros a noroeste de Tetuão. Daí, essa mole de dez mil homens seguiria para a precipitada e desastrosa tentativa de ocupar Tânger, por mar e por terra, em 1437, que resultaria, para além dos mortos, na captura de inúmeros prisioneiros, entre os quais o débil infante D. Fernando, de quem já aqui falei. Felizmente que por essa altura o cabo Bojador havia sido ultrapassado, desfazendo-se assim os assustadores mitos medievais e escancarando-se a porta para a descoberta da costa africana a sul, havendo já lugar a trocas comerciais na angra onde se situa hoje a cidade de Dakhla, no Sara Ocidental, à qual os portugueses deram o nome de Rio de Ouro, por ali afluir esse precioso metal originário de Tombuctu, no reino do Mali. Mas por lá passaremos, em seu devido tempo.
Terminou em Tetuão a primeira manga da viagem iniciada na “cidade azul”, tendo por companheiro de assento um engenheiro finlandês de meia-idade de Málaga. Viera a Marrocos «apalpar terreno», deixando em aberto a possibilidade de se mudar para ali, à semelhança de tantos outros europeus.
Era reputada a audácia dos piratas de Tetuão, hoje reencarnados nos estafetas que na estação rodoviária lançam a confusão junto dos forasteiros acabados de chegar, impedindo-os de conseguir atingir as bilheteiras sem ser através dos seus serviços, devidamente taxados, como é óbvio. Enfim, complicavam o que à partida parecia fácil, demasiado fácil. A sua actuação resumia-se em “ajudar” a comprar o bilhete na expectativa da propina, e se ela não fosse a aguardada faziam má cara. «Dois dirhams, só?», perguntou um deles. Um outro tipo de função ad hoc era a de guardador de bagagem pessoal na mala colectiva da camioneta, a troco de «cinco dirhams apenas». É claro que dispensei o serviço, e até à partida do veículo fiquei de olho na mochila a ver se não levava sumiço. Soube, mais tarde, que os marroquinos acatam a “obrigação” imposta porque transportam consigo produtos contrabandeados de Ceuta e, desse modo, compram o silêncio dos “piratas” dos terminais rodoviários.
As informações do bilhete adquirido em Chefchouen estavam em Francês e as do que comprei em Tetuão, hora e meia depois, eram em Castelhano, sinal da forte concorrência destas duas línguas em Marrocos, se bem que o Francês leve um avanço bem considerável.
Joaquim Magalhães de Castro