Os Mártires da Coreia
Em 1991 eram 2,5 milhões os católicos na Coreia (do Sul, entenda-se). Hoje são seis milhões, senão mais, provavelmente o crescimento mais rápido da Igreja Católica no mundo inteiro. Mas nem sempre tudo foi fácil, como em tudo na vida da Igreja.
A fé cristã chegou à Coreia no séc. XVII, poderíamos referir a data de 1603 como o momento de partida. Nesse ano, um diplomata coreano, Yi Gwang-jeong, em plena dinastia de Joseon, regressou de Pequim, da corte do Celeste Império, com uma série de livros teológicos, escritos ou traduzidos, em Chinês, pelo missionário jesuíta Matteo Ricci, como era o caso de “A verdadeira doutrina de Deus”. Até 1758 a fé católica foi-se disseminando pela Coreia, a terra das Belas Manhãs. Naquele ano, o rei Yeongjo, da dinastia de Joseon, determinou que a fé católica era ilegal, considerando-a como uma prática demoníaca. Os ventos sopraram então agrestes para a cristandade coreana, até 1785. Nesse ano, graças a Yi Seung-Hun (1756-1801), filho do champan (vice-ministro) Soam Yi Dong-uk, dá-se o renascimento da Igreja Católica, de forma mais perene e sólida.
Yi Seung-Hun, ou Pedro, é um dos primeiros mártires católicos coreanos, tendo sido iniciado na fé por Yi Byeok, um académico convertido, inspirado em Ricci. O pai de Pedro, apesar da conversão, tornou-se depois anti-católico, ao contrário da sua mulher, irmã de um dos futuros mártires coreanos de 1801, Yi Ga-hwan. Tudo, recorde-se, num cenário de leigos, sem sacerdotes, até à chegada dos primeiros missionários franceses em 1836, na clandestinidade. Mas a cristandade coreana era forte e fervorosa, registe-se.
As perseguições eram de facto a nota saliente desta cristandade clandestina. Em 1839, 1846 e 1866 surgiram desta comunidade 103 santos mártires, entre os quais se distinguem o primeiro presbítero coreano André Kim Taegon, além do valoroso apóstolo leigo Paulo Chong Hasang, e seus companheiros. Estes quase todos leigos, homens e mulheres, casados ou não, anciãos, jovens e crianças, todos padecendo suplícios e o martírio, as sementes da Igreja na Coreia. Num total de dez mil pessoas associadas pelo martírio, na primavera da Igreja na terra das Belas Manhãs. Os mártires coreanos foram canonizados em 1984 em Seul por São João Paulo II, na primeira cerimónia de canonização feita fora do Vaticano.
Poderíamos também recordar aqui o Servo de Deus Paulo Yun Ji-chung e os seus 123 companheiros, torturados e assassinados in odium fidei (“ódio da fé”), em 1791, em processo de beatificação desde 2004, ou João Song Haebung, um leigo missionário martirizado durante a guerra da Coreia (1950-1953), a primeira causa de beatificação (iniciada em 2006) de um leigo católico no período posterior ao domínio colonial japonês (1894-1945). Outros mártires há ainda no séc. XX, como os sacerdotes e religiosos que morreram entre 1940 e 1950, martirizados na região de Ganwon-do e de Hamgyeong-do. Além dos 36 Servos de Deus da Ordem de São Bento (da Congregação Beneditina de Santa Otília, de origem alemã), da comunidade de Wagwan, que morreram nas prisões dos campos de trabalho e de detenção entre 1949 e 1952, quando prestavam assistência aos prisioneiros.
Mas voltemos à primavera sangrenta do Catolicismo coreano. Podemos mesmo afirmar aqui que o sangue dos mártires foi o fermento da fé na Coreia. Depois do impulso de Pedro Yi Seung-Hun, a comunidade cresceu, embora sem o sentido eclesial e a devida estrutura, sem pastores, numa hierarquia frágil. O bispo de Pequim recomendou a necessidade de existir uma hierarquia que precisava de uma sucessão apostólica, enviando depois um sacerdote, Chu-mun-mo, o que fez a comunidade coreana crescer rapidamente para mil fiéis. Depois da perseguição de 1785 tudo piorou, com o único sacerdote a ser morto mais tarde, em 1801. Mas não parou de todo o crescimento da comunidade cristã. Apesar dos pedidos ao bispo de Pequim de sacerdotes e orientação espiritual, devido às proibições estatais, só em 1836 viriam os referidos missionários, ilegalmente, das Missões Estrangeiras de Paris (um bispo, D. Imbert, e dois sacerdotes, Maubant e Chastan, decapitados em 1839).
A segunda tentativa é a de São André Kim Taegon, que conseguiu fazer entrar um bispo e um sacerdote, criando-se uma hierarquia católica perene na Coreia. As perseguições foram ferozes porém, como em 1866, com mais de dez mil mortos, até ao decreto de liberdade religiosa de 1882. André Kim nasceu em 1821 numa família cristã, nobre. O seu pai transformou a sua casa numa “igreja doméstica”, de reunião de cristãos, de catecumenato, de baptismo, como nas comunidades romanas cristãs primitivas. O martírio foi o prémio do pai. André, com 15 anos em 1836, quando chegaram os missionários franceses, foi enviado para Macau, para se preparar para o sacerdócio. Em Macau frequentava a igreja de Santo António, perto da qual existe hoje uma escultura pública em sua honra. Ordenado diácono, em 1844, foi ordenado presbítero em 1845, em Xangai, por D. Jean Joseph Ferreol (primeiro bispo da Coreia, martirizado por asfixia em 1853). Todos rumaram então para a Coreia, em pleno clima de perseguição. Nobre na atitude e carácter, rigor e zelo apostólico, o seu labor converteu muitos coreanos e ajudou a construir a Igreja no País. Através do bispo de Pequim, tentou enviar cartas para a Europa, mas foi descoberto, preso, torturado. Negou a apostasia sob tortura, e mesmo perante o rei, pois era aristocrata por nascimento e podia ser por ele recebido. Depois de suplícios, foi decapitado a 16 de Setembro de 1846, em Seul, sendo o primeiro sacerdote coreano martirizado.
Paulo Hasang Chong, leigo coreano, nasceu em 1795 em Mahyan. Seu pai, Agostinho, e o seu irmão Carlos, foram martirizados nas perseguições de 1801. Sua mãe, Cecília, e a irmã Isabel, foram constrangidos na sua terra, tendo que se juntar aos cristãos de Seul. Foi pelo menos quinze vezes a Pequim, a pé, correndo perigo de vida, tendo colaborado ainda na vinda do bispo e sacerdotes franceses já mencionados. D. Imbert acolheu-o, bem como a sua mãe e irmã. O prelado queria que ele se tornasse sacerdote. Mas um apóstata denunciou-os às autoridades, que prenderam a família. De nada valeram interrogatórios e torturas: Paulo não abandonou a fé católica. Foi decapitado em 22 de Setembro de 1839, com o seu companheiro de fé, Agostinho, e outros mais cristãos. Cecília e Isabel seriam martirizadas mais tarde. Três bispos, sete sacerdotes, dez mil coreanos pagaram com a vida a sua fé até 1882.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa