Controvérsias entre Roma e Constantinopla

Os Iconoclastas

Muitas foram as questões entre Roma e Constantinopla desde o século III, inflamando-se as relações entre o Ocidente e o Oriente em cada interpretação, em cada doutrina, em cada tese, em cada concílio. Uma dessas celeumas, que se transformou em querela e fracturou ainda mais as relações entre os dois grandes centros do Cristianismo antes do Ano Mil, foi a crise dos Iconoclastas, ou das Imagens. Desde o século III que a fé em Cristo se plasmava em imagens, cada vez mais variadas na tipologia, nos suportes, no ornato e estética, na sua localização, tornando-se uma das marcas fundamentais da catequização cristã. A história da Salvação, os sacramentos, a vida de Cristo, dos Apóstolos, etc., eram cada vez mais vertidas em imagens, narrativas que substituíam literaturas e pregações.

A partir do século IV, depois de Constantino e Teodósio, multiplica-se a construção de igrejas, autênticos teatros sacros, cultivando-se todas as artes e formas de ornamentação capazes de potenciar ainda mais as imagens no plano estético, mas acima de tudo doutrinário. A devoção às imagens aumentou e impregnou-se entre os crentes, surgindo até teólogos a recordarem os perigos do excesso de culto das mesmas. Mas a convicção de que as imagens, como as relíquias – envolvidas ambas num processo artístico – protegiam, curavam, ajudavam, eram medianeiras, benfazejas. E por isso deveriam ser veneradas.

Neste contexto surgiu uma controvérsia em torno da veneração das imagens – ou ícones (do grego “eikon”, “imagem”, em sentido lato) – na Igreja Bizantina, oriental portanto, entre os séculos VIII e IX. A crise ou querela iconoclasta, ou iconoclasmo, do grego “eikonoklastes”, ou seja, “destruição de imagens”. Tudo começou em 726, com um decreto do imperador bizantino Leão III Isáurico (713 ou 717-741), no qual considerava o culto das imagens como um obstáculo à conversão de judeus e muçulmanos. Leão III era de origem síria, recebeu uma educação e formação muito influenciada pela concepção anicónica (recusa das imagens) e anti-idólatra do Judaísmo, como também do Islão, religiões com as quais dividiu o seu espaço de origem e da sua juventude, deles recebendo forte influência.

A sua oposição, que se pode até qualificar como feroz, às imagens ia de encontro a preocupações de reforma religiosa. Esta acabou por ter na luta contra as imagens uma das suas linhas programáticas mais importantes, talvez até mesmo a bandeira, em Bizâncio diga-se. Imperadores e bispos chegaram a acordos mesmo, ainda que difíceis e de pouca duração muitas vezes. Mas a oposição mais feroz quer a acordos quer a essa “perseguição” das imagens provinha das comunidades monásticas. De facto, os monges era os principais inspiradores, criadores e difusores das imagens e do seu culto na Igreja no Oriente, o qual criou devoções fortemente instituídas pelas populações e reproduzidas de forma generalizada na arte religiosa bizantina/ oriental, na qual o ícone, em qualquer dimensão ou suporte, móvel ou imóvel nos magníficos iconóstases das igrejas orientais, assume particular grandeza e sumptuosidade, além da sua importância litúrgica.

Leão III e os Iconoclastas ganharam a antipatia de Patriarcas, de Papas em Roma e do clero bizantino, em particular dos monges, que defenderam as imagens com coragem e a própria vida. Constantino V (741-755), sucessor de Leão III, chegou a exigir até o juramento de não veneração das imagens. Monges foram assassinados, ou mutilados (para não pintarem ou transportarem ícones), muitas imagens foram destruídas e substituídas por decoração de natureza profana. Mártires, os monges sofreram mas ganharam o respeito e a glorificação por parte do povo cristão, sempre fiel às imagens taumatúrgicas e protectoras.

A querela teve duas fases, de intensidade diferente, a primeira no século VIII, a segunda na centúria seguinte. Constantino V personificou o período de maior intensidade iconoclasta, mandando retirar e destruir imagens, matar ou mutilar os que as defendiam, ou mesmo persegui-los. Depois vieram as questões teológicas, mais do que a destruição. Surge a questão da natureza de Cristo, por exemplo: os partidários das imagens eram acusados de só representarem a Sua humanidade. Ou dividiam a sua unidade, como os Nestorianos, ou confundiam as suas duas naturezas (divina e humana), como os monofisitas. Logo, perante este argumento, eram acusados, os defensores das imagens, de serem idólatras e, pior que tudo, hereges. O Concílio de Hiera (754), reunido (também) para condenar os defensores dos ícones, sancionou aquelas acusações, afirmando que a Eucaristia era a única imagem apropriada de Cristo e que os ícones de Maria e dos Santos eram apenas ídolos, logo deveriam ser destruídos.

A mudança começou a operar-se com a imperatriz Irene, que convocou o Concílio de Niceia II (787), que começou com a leitura de duas cartas do Papa Adriano aos imperadores e ao Patriarca de Constantinopla, defendendo a legitimidade das imagens, que Roma aliás afirmou sempre. O concílio justificou a doutrina sobre as imagens com a Sagrada Escritura e com a Tradição, distinguindo o seu culto daquele que só pode ser dado e em exclusivo e na forma mais sublime a Deus. A imagem, referiram os padres conciliares, possui uma capacidade real de representação. A Encarnação torna Deus visível dentro das limitações da natureza humana, pelo que representá-Lo na sua forma humana é confessar e assumir que encarnou realmente e não de forma aparente. Este concílio aprovou resoluções fundamentais, a partir dos princípios acima referidos, sobre a natureza e função das imagens, além da veneração que se lhes deve ser concedida. Reavivou assim a arte dos ícones, mas os problemas e retrocessos não acabariam aí, dependendo da fé dos imperadores e do valor que davam às imagens. Esta querela era acima de tudo uma questão de afirmação do poder secular, temporal, dos imperadores bizantinos.

Até 843 a controvérsia manteve-se, ainda que menos sangrenta ou destruidora, mas mais política e teológica. Naquele ano com efeito foi restabelecido o culto dos ícones, ou “triunfo da Ortodoxia”, ainda hoje celebrado no primeiro Domingo da Quaresma (“Domingo da Ortodoxia”). O ícone vencera o iconoclasmo e afirmara-se como expressão por excelência da fé no Oriente. E não só.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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