A Cidade e as Serras
Peço emprestado a Eça de Queirós o título de um dos livros que li e reli desde a adolescência, para dar indicação aos meus leitores da intenção desta crónica: reflectir um pouco sobre a situação em Portugal, neste momento.
Tenho evitado abordar n’O Clarim temas que extravasem as questões mais directamente relacionadas com a Igreja, atendo-me por isso aos grandes temas sociais ou aos sinais das transformações que estão a ocorrer no Vaticano, por impulso do Papa Francisco – essa espécie de revolução silenciosa que a todos colheu de surpresa.
Mas um olhar sobre o nosso país é também um dos exercícios (mínimos!) de cidadania, a que ninguém escapa, nem os cristãos, naturalmente.
E olhando para a nossa “cidade”, no sentido metafórico da comunidade nacional a que pertencemos, procuro a altura das “serras” da minha Beira Alta adoptiva para tentar perceber a situação, com alguma distância, na tentativa ( vã?) de objectividade. Daí o título: A Cidade e as Serras…
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Fez há dias cinquenta anos (!) que um caloiro um pouco confuso, perplexo – e muito desenquadrado, na vetustez dos Gerais – entrou pela primeira vez numa aula de Direito Constitucional, em Coimbra.
A nova capa e batina, estreada entretanto, como que lhe fixava o novo estatuto de universitário, aos 18 anos recém completados.
Pois nessa disciplina (algo misteriosa ainda) aprendeu o caloiro que os povos se organizam politicamente, há séculos, em torno de constituições. Documentos que, representando a Lei Fundamental de todo o sistema jurídico, lhe definem os princípios estruturantes; e asseguram a articulação das diferentes instituições, em que se exprime o poder político.
Apreendeu ainda que há constituições que duram séculos e outras que não resistem à erosão política de alguns anos. E que, se muitas são produzidas no quadro mais ou menos pacífico dos parlamentos, outras são tiradas a ferros do ventre da História, em processos de violenta alteração política.
Esse caloiro era eu e, cinquenta anos depois, tive há dias uma tardia aula prática da minha disciplina preferida, no debate parlamentar que antecedeu a queda do Governo.
Segui o debate do princípio ao fim, apreciei os dotes tribunícios dos senadores da República e de jovens estreantes, registei o falhanço técnico do chamado voto electrónico, na votação da moção de rejeição. E assisti finalmente à queda de um Governo.
À ficção jurídica da “queda”… correspondeu a realidade política de um virar de página. E foi com a sensação de divórcio entre o político e o jurídico; e entre o político e a vida que vi alternarem-se as palmas do aplauso e o silêncio da reprovação nas diversas bancadas partidárias, enquanto iam desfilando, pela tarde fora, as visões diferentes da sociedade, da economia, da interpretação do sistema constitucional.
E mesmo da conduta pessoal de alguns dos líderes, de vários quadrantes, com ou sem (muito) apetite de poder.
E defrontaram-se duas maiorias e duas legitimidades, ambas “maioritárias” e ambas “legítimas” ; avaliou-se o poder dos votos e o poder das geometrias parlamentares, tudo em nome do bem comum. Que pelos vistos não é bem para todos, nem comum a todos.
E enquanto, no interior da Assembleia, se trocavam acusações, por alegadas incoerências no passado, em tom apesar de tudo civilizado, de mera disputa verbal, lá fora na rua dois campos rivais marcavam o seu território, numa ligeiríssima simulação do que se poderia chamar de guerra civil democrática. Com palavras de ordem e bandeiras desfraldadas, conforme a tradição.
Quem ali não esteve – e foi a esmagadora maioria – estudava, ensinava, produzia, pesquisava, treinava, escrevia, construía, deixando a poucos a responsabilidade de os representar. Por algumas horas o Parlamento foi todo o País, não sendo nunca todo o País…
O País aceitou, pela força do consenso democrático, ser ali todo representado. Sabendo que muito do que é a vida transborda sempre da mera concertação política.
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Não quero dizer com tudo isto que desejaria ver substituídas por outras regras (e quais?) estas que nos regem, as da convivência democrática. As que a Constituição de 1976 colige e nos governam há quase quatro décadas, prestes a completarem-se.
Mas quatro décadas de História Constitucional Portuguesa dão-nos hoje a consciência, cada vez mais clara, de que o divórcio entre a política e a vida real se paga muito, muito caro.
Às abstracções intelectuais (chame-se-lhe ideologias, parti pris ou o que quer que seja), de um lado e de outro, respondem as pessoas comuns, vivendo, trabalhando. Como podem.
O problema é que, sendo as regras do jogo o que são, estão as pessoas comuns desprovidas do poder de julgar imediatamente, com consequências políticas, os actores principais, por estarem claramente, obviamente, fora de jogo.
Cada um de nós dará uma opinião diferente sobre quem estava fora de jogo. Ou os que ganharam e afinal perderam. Ou os que perderam e afinal ganharam.
O voto, essa manifestação legítima de soberania que é, mal entrado nas urnas transforma-se num cheque em branco.
Lá dizia o veterano Wilson Churchill: «É de facto o pior dos sistemas. Só que não há melhor…»
À guisa de conclusão
Passada a época das grandes correntes ideológicas que percorreram o século XX e lhe imprimiram as suas marcas de utopia e desastre, o mundo vive hoje numa espécie de conformismo frouxo, resignado, diante de uma Globalização que amarra tudo a tudo e todos a todos.
Globalização que, se por um lado acentua interdependências positivas, por outro põe a nu vulnerabilidades da ordem social e política a que estávamos habituados.
A consequência imediata, para cada momento político relevante, no plano nacional, como é naturalmente o das grandes escolhas eleitorais, é a de que, tendo-se esbatido um pouco a fronteira entre nós e os outros, entre os de dentro e os de fora, os nacionais e os estrangeiros, Portugal é hoje observado como nunca pelo mundo exterior.
Mesmo que se pense que este quadro é um pouco forçado, convenhamos que a soberania teórica dos Governos está muito longe hoje dos instrumentos práticos tradicionalmente ao seu dispor.
Daí que se tenha dado o merecido relevo à maratona de contactos internacionais levados a cabo pelo possível futuro Ministro das Finanças do PS , Mário Centeno, tranquilizando mercados, investidores e os mais reputados jornais financeiros.
Enquanto dentro de portas o debate é virulento, tranquilizam-se no exterior aqueles de cujas decisões económicas todos dependemos.
Sinais dos tempos !
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No momento em que concluo esta crónica, todos aguardam uma palavra decisiva do Presidente da República. Que ela venha e nos indique caminhos de esperança, não por ter o Chefe de Estado uma varinha mágica que altera a realidade, mas porque detém os poderes constitucionais para escolher a solução menos má para o País.
Carlos Frota
Universidade de São José