Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXXVII

O Relativismo – IV

O relativismo é mesmo uma das maiores ameaças nos tempos de hoje. Ameaça global, a quase todas as dimensões humanas, não apenas do ponto de vista religioso ou moral. Quase se misturando com a globalização e outros fenómenos modernos, já é difícil conceber o mundo sem relativismo, tendência que substituiu ou se impôs ao racionalismo e ao cientismo em muitos aspectos. A Igreja Católica, na sua vertente de entidade que assume um papel e responsabilidade fundamentais na cultura na ciência, no pensamento, na sociedade, por exemplo, é um dos baluartes, talvez o maior, na luta contra o relativismo, ou pelo menos, pela sua mitigação ou diluição. Mas sem imposição do absoluto “puro e duro”, mas sem relativismos. Estamos pois perante um dos maiores debates da civilização, da sociedade humana e dos tempos modernos.

Bento XVI alertou para os riscos do relativismo e da secularização na formação das novas gerações, num discurso dirigido ao mundo universitário católico dos Estados Unidos, há alguns anos. Não foi mais um discurso. Foi o lembrar de algo importante no lugar certo e no tempo certo, além do modo. Foi o assumir da tarefa da Igreja em ser arauto da renovação intelectual e civilizacional, o assumir da responsabilidade de englobar um bilião de crentes, que não são apenas estatísticas, mas uma realidade que a coloca como entidade que tem que ter uma pauta de valores e princípios reitores, de exemplo e de zénite espiritual e de conduta do mundo, sem absolutismos serôdios ou de tentações caudilhistas.

O Papa recordou a importância da educação num tempo de relativismo e de crescente falta de valores, sobretudo daqueles para quem a novidade é a única coisa que realiza ou dá sentido à liberdade. «Observamos hoje certa timidez diante da categoria do bem e uma imprudente caça de novidades em evidência como realização da liberdade. Somos testemunhas da convicção de que toda a esperança tenha o mesmo valor e da relutância em admitir imperfeições e erros. E particularmente inquietante é a redução da preciosa e delicada área da educação sexual à gestão do “risco”, privada de qualquer referência à beleza do amor conjugal», assinalou o Papa alemão em Washington, na Universidade Católica. Ratzinger frisou ainda, preclaramente, que «os conflitos pessoais, a confusão moral e a fragmentação do conhecimento» lançam novos desafios e problemas para a formação académica e para a educação, «fundados na unidade da verdade e no serviço à pessoa e à comunidade».

RELATIVISMO, SECULARIZAÇÃO, DIVISÃO…

E os alertas em relação ao relativismo e suas consequências e interligações são evidentes no trajecto apostólico de Bento XVI e da Igreja desde há algumas décadas. Não apenas em relação à Igreja, à doutrina cristã, mas à sociedade em geral, pois é gerador de porosidade, erosão e deterioração de valores e normas aceites e estabelecidas, sem ditaduras ou primados. A situação é, à luz desses alertas, ainda mais delicada, segundo Bento XVI, «nas sociedades em que a ideologia do secularismo coloca uma divisória entre verdade e fé». «Esta divisão levou à tendência de igualar verdade e conhecimento e de adoptar uma mentalidade positivistica que, rejeitando a metafísica, nega os fundamentos da fé e rejeita a necessidade de uma visão moral. Verdade significa mais do que conhecimento: conhecer a verdade leva-nos a descobrir o bem. A verdade fala ao indivíduo na sua inteireza, convidando-nos a responder com todo o nosso ser», sublinhou.

Para Bento XVI, «a autêntica liberdade não pode jamais ser alcançada no afastamento de Deus. Uma escolha semelhante significaria, em última análise, subestimar a genuína verdade de que precisamos para nos entendermos a nós mesmos». «A revelação de Deus oferece a todas as gerações a possibilidade de descobrir a verdade última sobre a própria vida e sobre o fim da história. Este dever não é nada fácil: envolve toda a comunidade cristã e motiva toda a geração de educadores cristãos a garantir que o poder da verdade de Deus forje toda a dimensão das instituições», reforçou. O comprometimento não é apenas individual, mas eclesialmente colectivo, não se cingindo apenas à Igreja, mas devendo ser universal, quase num esforço de devolver o humanismo à Humanidade. Uma vez mais, Bento XVI mostrou o compromisso da Igreja não apenas com a sua comunidade de crentes, mas com todos, com o Outro, com os ateus e agnósticos, com todos os que possam querer “salvar” a Humanidade pela via do bem e da harmonia.

Surge aqui, na relação com a educação e com a academia, um dos alertas do Papa contra o relativismo. Ou melhor, pela procura, de uma forma melhor, da fé. O Papa pronunciou-se, enfaticamente, sobre a necessidade de deixar vincada a identidade ou marca católicas nas Universidades que se apresentam como tal, que muitas vezes apenas ostentam a denominação mas não professam ou sequer vivem – não precisando de o fazer confessionalmente – o ideal que levam no estandarte: «Aceitamos a verdade que Cristo revela? Nas nossas universidades e escolas, a fé é tangível? Atribuímos à fé fervorosas expressões na liturgia, nos sacramentos, mediante a oração, os gestos de caridade, a solicitude pela justiça e o respeito pela criação de Deus?», questionou. Esta viagem de Bento XVI constituiu um marco na luta da Igreja contra o relativismo, não no sentido de o extirpar como uma heresia maléfica ou demoníaca, mas mitigar ou reduzir a algo que não afecte a marcha de vida do mundo e a sua saúde espiritual e a procurado verdadeiro conhecimento.

Em suma, a Igreja tem procurado refrear o relativismo. Ou pelo menos torna-lo algo que não afecte o mundo de hoje, o qual foi “metastizado” e enfermado por este suplício da incerteza e da falta de princípios reitores, de valores absolutos. Que não significam imutabilidade, inalterabilidade ou anacronismo, sequer, mas sim luminárias e marcas identitárias, esteios na decisão e guias na acção.

A ideia da não existência de princípios que regem o comportamento dos homens tem-se vindo a difundir rapidamente. E o domínio que exerce essa vacuidade no pensamento tem trazido graves consequências no que toca à moral, ao comportamento e à tomada de decisões. O desejo profundo de uma “liberdade” confunde-se cada vez mais com uma extensa licenciosidade pela qual o homem se permite quase ser o “deus de si mesmo”. A comodidade e o facilitismo da doutrina relativista tornaram tudo possível e divinizaram tudo, criando uma sensação de bem-estar e conforto que não passam de fenómenos imediatos e sem fundamento, ou não dão respostas a problemas e questões profundas. Nem substituem a razão. Mas é verdade, o relativismo é a “doença global”, na sua disseminação em todas as áreas da vida humana.

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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