Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXVI

A política na Igreja – II

Estava para durar sim, o Kulturkampf. E estilhaçar a Igreja na Alemanha, unificada. A Igreja não esmoreceu, não se deixou abalar, mesmo com Roma ameaçada e sem força internacional. Bismarck, já vimos, foi a peça-chave do Kulturkampf. Para muitos, foi um herói. Em 21 de Março de 1871, Bismarck foi nomeado príncipe e chanceler imperial do Reich. Em um célebre discurso por si proferido, a 14 de Maio de 1872, perante o Reichstag (parlamento alemão), no sentido de demonstrar bem o poder e a independência da Nação Alemã unificada, afirmou perante os parlamentares: «Seien Sie außer Sorge, nach Kanossa gehen wir nicht, weder körperlich noch geistig» (Não tenham receio, não iremos a Canossa nem em corpo nem em alma), recordando a humilhação sofrida pelo imperador germânico Henrique IV, em 1077, quando teve que ir, descalço e apenas com um cilício, em pleno Inverno, pedir perdão ao Papa Gregório VII por não se haver submetido à autoridade papal, no castelo de Canossa, na Itália. A humilhação de Canossa ainda pesava na memória alemã…

Em 1832, na encíclica “Mirari vos”, o Papa Gregório XVI (1831-1846) condenava o Liberalismo, a imprensa livre e o livre pensamento. No pontificado do seu sucessor, o Papa Pio IX (1846-1878), a Igreja optou por uma posição de irredutibilidade nas suas concepções, cujo clímax foi, primeiro, a publicação em 1864 da encíclica “Quanta cura” e do “Syllabus de Erros” e, depois, em 1870, na declaração do dogma da infalibilidade papal no Concílio Vaticano I.

No “Syllabus de Erros” de 1864 a Igreja Católica enveredou por um forte ataque às novas ideologias, acabando a condenar oitenta declarações filosóficas e políticas, com destaque para as concepções do Estado-nação moderno, que rejeitou como falsas. A liberdade de religião, o livre pensamento, a separação da Igreja e do Estado, o casamento civil, a soberania do povo, a democracia, o liberalismo e o socialismo, foram alguns desses conceitos que rejeitou, a par da negação da razão como a única ou a principal base da acção humana. Não apenas a razão fora secundarizada, como também o conceito de conciliação com progresso, ou pelo menos a sua conciliação com a Igreja. A coroar esta panóplia de rejeições ou negações, apareceu também um índice de livros proibidos pela Igreja, o que lançava ainda mais discussão e confronto ideológico dos meios intelectuais e estatais de vários países como a Alemanha, e a Igreja.

 

UMA UNIFICAÇÃO… QUE DIVIDIA!

Apesar de tudo, a Igreja não perdeu tempo na sua reorganização, além do uso das vantagens da imprensa, por exemplo, ganhando em visibilidade, ainda que também em exposição perante os adversários. O controlo da Igreja era o objectivo do papado, relativamente conseguido, mas mantendo uma centralização pesada e com uma hierarquia rígida, encimada por uma primazia infalível do Papa que causava discórdias e críticas. Ao mesmo tempo, a oposição da Igreja às reformas liberais e aos momentos revolucionários, bem como à emancipação do povo e dos trabalhadores, afastava muitos fiéis. Estes reviam-se cada vez mais no Estado-nação, fortemente secularizado. Esta concepção não era bem vista por muitos clérigos. Os dogmas também não o eram por um número crescente de cristãos e principalmente por políticos: os dogmas eram vistos como a forma de lealdade dos cristãos não ao Estado, mas à Igreja, centrada na figura autoritária e obrigatória do Papa. Ora, os modernos Estados dos finais do século XIX colidiam com estas perspectivas.

O Kulturkampf na Alemanha era assim o mais estatizado e organizado movimento de emancipação dos Estados relativamente à Igreja e aos seus princípios, resumindo-a ao seu domínio espiritual. O que Roma não aceitava, todavia. Na Inglaterra, por exemplo, o primeiro-ministro britânico Gladstone (1809-1898, activo no poder entre 1868 e 1886, com interregnos) escrevia em 1874 que a proclamação da infalibilidade papal comprometia a fidelidade dos fiéis católicos ingleses ao Estado. Na mesma senda, os seus pares na Europa, os liberais, consideravam os dogmas como uma declaração de guerra contra o Estado moderno, contra a ciência e a liberdade espiritual.

Roma resolvia estas críticas com excomunhões de críticos e expulsão do ensino, o que enfurecia ainda mais os defensores de movimentos como o Kulturkampf, reforçando a sua luta e posições secularizantes. O autoritarismo papal atingia o limite da tolerância dos Estados. A Alemanha seria o porta-estandarte entre os Estados que proclamaram a separação do Estado e da Igreja. A Áustria anulou depois em 1870 a Concordata de 1855, que tinha firmado com a Santa Sé. Depois, a França recusou publicar as proclamações dogmáticas e novas doutrinas de Roma, como a Saxónia e a Baviera fizeram em relação ao decreto da Infalibilidade Papal. Na Espanha, a publicação do “Syllabus de Erros” era proibida em 1864. Na unificação alemã, por exemplo, subsequente às guerras Austro-Prussiana de 1866 e Franco-Prussiana de 1870, a Igreja posicionar-se-ia contra tal desiderato, como o faria na questão da unificação da Itália, o que lhe valeu sérios dissabores políticos e territoriais.

Mas eram os sinais dos tempos. Os dogmas e doutrinas da Igreja Católica que tinham sido proclamados em 1854, 1864 e 1870 foram encarados na Alemanha como ataques directos ao Estado-nação moderno e ao País. Bismarck, com os liberais e os conservadores, apoiados pelos protestantes mais radicais, tudo fizeram por anular o Partido do Centro, que era pró-Roma. O que é curioso, é que muitos católicos secundaram as posições de Bismarck e seus apoiantes, mesmo contra o Papa, pois não aceitavam a infalibilidade daquele. Até uma expressiva maioria dos bispos católicos alemães acabaria por considerar que a definição do dogma como não era adequada e oportuna na situação política da Alemanha. Tal como Gladstone afirmara na Inglaterra, também o chefe de Governo da catolicíssima Baviera, Hohenlohe, proclamou que o dogma da infalibilidade papal comprometia a lealdade dos católicos ao Estado, na Alemanha. Por isso surgiu a Velha Igreja Católica, que não aceitava tal dogma. É correcto porém afirmar que muitos católicos alemães acabariam por se reconciliar com a Igreja e aceitaram o dogma.

Mas nada mudaria. O Kulturkampf alastrava e impunha-se. A vida monacal era considerada rectrógada, medieval, reaccionária. Adjectivos que eram colados à Igreja na Alemanha, também considerada como atrasada e opositora ao progresso. Mas também será curioso recordar que, a par destas convulsões, a Igreja na Alemanha cresceu: o número de mosteiros, masculinos e femininos, por exemplo, aumentou, tal como os seus efectivos, surgindo congregações e assistindo-se a um verdadeiro renascimento. Na unificação alemã, em 1871, o novo Império Alemão incluía 25,5 milhões de protestantes (62 por cento da população) e quinze milhões de católicos (36,5 por cento da população). Uma população católica em crescimento, o que fez muitas vezes os líderes o Kulturkampf pensar e repensar estratégias… Mas nada estava terminado….

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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