A identificação do Shangri-La
No decorrer das suas investigações em torno do mítico reino do Cataio, que até então não tinham logrado identificar, os jesuítas João Cabral e Estêvão Cacela ouviriam falar de um outro misterioso reino. “É porém aqui muito célebre um reino que dizem ser muito grande, e se chama Xembala, e fica junto a outro que chamam Sopo”, escreve Cacela na sua “Relação”. Sabia o padre que o dito reino do Sopo era habitado pelos tártaros (mongóis), “como entendemos pela guerra que este rei nos diz que aquele Reino tem de contínuo com a China”, acrescentando depois que, apesar do reino da China estar populado por muita mais gente, “a do Sopo é mais esforçada”, e por isso tinha por hábito vencer os chineses em todas as batalhas travadas. A respeito de um suplementar esclarecimento geográfico da região circundante mais informa a carta de Cacela: “Nem faz contra isto não haver aqui notícia de outro nome, pois nem a China nem a Tartária, nem o Tibete são conhecidos por estes nomes, dos quais não têm notícia, e à China chamam Guena, à Tartária Sopo e ao Tibete Potente”. É a partir desta linha de raciocínio que o padre alentejano chega a uma importante conclusão: o Xembala e o Cataio eram um só reino. Nas suas palavras: “E como o Reino do Cataio seja muito grande e o único que fica por esta banda junto aos tártaros, conforme as descrições dos mapas, parece podermos com alguma probabilidade cuidar ser o que aqui chamam Xembala”.
Pela primeira vez é descrito aos europeus esse lugar fictício chamado Shambala (termo sânscrito com o tríplice significado de “paz”, “tranquilidade” e “felicidade”), cujo mito daria origem, séculos depois, ao Shangri-La descrito pelo autor inglês James Hilton no seu “Horizonte Perdido”, romance já por diversas vezes transposto para o grande ecrã, em versões mais ou menos livres, uma de Frank Capra (1937) e outra de Charles Jarrot (1973), e que nesta coluna iremos analisar.
Logo nessa altura, Cacela mostra vontade de prosseguir a viagem, deixando no Butão o padre Cabral para assim distrair o monarca. Admite o jesuíta as enormes dificuldades pelas quais iria passar até atingir o tão desejado território, onde, e uma vez transposta a etapa seguinte – ou seja, a chegada a Xigatsé, no Tibete Central, e o estabelecimento aí de uma missão católica –, pretendia demandar numa futura viagem. Escreve Cacela: “Não poderá ser irmos ambos o padre João Cabral e eu, vista a resolução deste homem com que não passemos avante, e assim sendo Deus Nosso Senhor servido, ficará aqui o padre João Cabral nesta casa e igreja que o Rei nos faz, pregando o Santo Evangelho a esta gente com a ajuda destes três que o Rei nos deu, e vendo juntamente o fruto que neste Reino se poderá fazer em as almas, para conforme a isto tratarmos do assento desta missão, e eu com a ajuda do Senhor procurarei passar ao Reino de Xembala, que pode ser ou nele, ou em algum dos que neste meio ficam, nos tenha Deus Nosso Senhor aparelhado ocasiões de maiores serviços seus, avisando o ano que vem a Vossa Reverência de tudo o que pudermos ter notícia”.
Também João Cabral nos fala de Xembala, se bem que numa perspectiva diferente da de Cacela. Na carta que escreveria em finais de Janeiro de 1628 em Xigatsé e que dali expediria para a Europa antes da viagem de regresso a Bengala, desta feita via reino do Nepal, ao identificar geograficamente a região de Utsang (Tibete Central) – que ele compara com o Alentejo, “tem grandes campinas de trigo e não vi terra mais parecida com Alentejo em Portugal” – informa-nos que esta confinava no norte com os tártaros, “com os quais por vezes este rei briga”, e que aqui vêm muitos deles, “pois a sua lei é a mesma”. Ora, os mongóis tinham adoptado o lamaísmo tibetano, já introduzido no século XIII, a partir do reino de Altan Khan (1543-1583).
Depois de nos descrever a Cochinchina, da qual vêm muitas mercadorias, como também da China “que demora a Nordeste”, João Cabral evoca o Reino de Cam, que mais não é que o Tibete Oriental, “de onde vem o almíscar”, e ainda Xembala, que na opinião de Cabral nada tinha a ver com o Cataio, mas com aquela que os mapas indicavam como sendo a Grande Tartária e que “fica mais desviada para Norte”. Não deixa de ser curiosa esta associação a um produto muito procurado nessa época, o almíscar, com uma determinada região. Xembala corresponde ao Shambala da tradição budista, o mítico reino do norte onde fora concebido e estruturado o célebre Tantra Kalachakra, mais conhecido como “Roda do Tempo”. Provavelmente Cabral ouviu falar do Shambala em conversas mantidas com tibetanos e das informações recolhidas pelo seu confrade Jerónimo Xavier, “mestre de noviços” e sobrinho do São Francisco Xavier, um dos mais bem posicionados jesuítas na corte do imperador Akbar, na altura sedeada em Lahore.
Resumindo e concluindo: João Cabral identifica Shambala com a actual Mongólia e a suas observações seriam, aparentemente, bem aceites entre os restantes missionários cartógrafos do século seguinte, como o comprova um mapa encontrado nos Arquivos do Vaticano, datado de 1782, onde surgem os nomes das regiões da Ásia tal como as descreve João Cabral.
Joaquim Magalhães de Castro