CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXVII

CISMAS, REFORMAS E DIVISÕES NA IGREJA – CXVII

A Teologia da Libertação – II

E nascia, de facto, a Teologia da Libertação. Não em Medellín, na Colômbia, não apenas nas Conclusões do Episcopado reunido, mas desde há algum tempo antes, não só na América do Sul mas também na Europa, onde chegavam os ventos do novo Evangelho Social. “O Episcopado Latino-Americano não pode ficar indiferente perante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria dos nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria humana (…) para nossa verdadeira libertação, todos os homens necessitam de profunda conversão para que chegue a nós o ‘Reino de justiça, de amor e de paz’. A origem de todo desprezo ao homem, de toda injustiça, deve ser procurada no desequilíbrio interior da liberdade humana, que necessita sempre, na história, de um permanente esforço de rectificação”.

Assim se expressaram os bispos latino-americanos, fazendo-se ouvir em todo o mundo e de forma apelativa. No que concerne à concepção cristã da paz, os bispos apontaram três características essenciais: a paz, em primeiro lugar, é obra da justiça, pois “supõe e exige a instauração de uma ordem justa na qual todos os homens possam realizar-se como homens, onde a sua dignidade seja respeitada, as suas legítimas aspirações satisfeitas, o seu acesso à verdade reconhecido e a sua liberdade pessoal garantida”. A paz, em segundo lugar, é uma tarefa permanente, constante, pois “a paz não se acha, há que a construir”, dado que o “cristão é um artesão da paz”. Em terceiro lugar, a paz é fruto do amor, ou seja, “expressão de uma real fraternidade entre os homens”, fraternidade essa “trazida por Cristo, príncipe da paz, ao reconciliar todos os homens com o Pai”. Em relação à injustiça e à pobreza, os bispos afirmavam que a missão pastoral da Igreja “é essencialmente serviço de inspiração e de educação das consciências dos fiéis, para ajudá-los a perceberem as exigências e responsabilidades da sua fé, na sua vida pessoal e social”.

UMA CONDIÇÃO HUMANA MAIS CRISTÃ

A “Igreja latino-americana (…) situou no centro da sua atenção o homem deste continente [América Latina], que vive um momento decisivo do seu processo histórico”, proferiram os prelados nas Conclusões da Conferência. “Nessa transformação, por trás da qual se anuncia o desejo de passar do conjunto de condições menos humanas para a totalidade de condições plenamente humanas e de integrar toda a escala de valores temporais na visão global da fé cristã, tomamos consciência da vocação original” da América Latina: “a vocação de unir numa síntese nova e genial o antigo e o moderno, o espiritual e o temporal, o que outros nos legaram e a nossa própria originalidade”.

Os objectivos a que se propunham os prelados reunidos em Medellín eram, na sua essência, uma aproximação ou actualização da renovação pastoral também defendida pelo Concílio Vaticano II, para a sociedade latino-americana. Mas impunha-se mais do que pastoral, ou liturgia, a urgência tinha a sua medida no drama da pobreza, senão miséria, que alastrava na América Latina, onde as injustiças sociais eram chocantes, a fome, a segregação social e a desigualdade campeavam, os caciquismos políticos em formas de ditaduras militares brutais e sectárias dominavam, onde os movimentos revolucionários, na estrita proporção de todo esse cenário negro, enxameavam e transformavam-se em guerrilhas e desencadeavam reacções governamentais devastadoras. Os Direitos Humanos, ou essenciais mesmo, escorriam na lama das infraestruturas atrasadas, nos bairros da lata miseráveis ou nas doenças, no desemprego e nas terríveis condições de vida.

A Igreja, segundo os bispos reunidos em Medellín, não podia abandonar os deserdados da roda do destino, tinha que reinventar o Evangelho, torna-lo social, diziam, e aproximar-se dos povos, onde o rosto humano de Cristo era por demais visível, clamavam muitos dos que se levantaram como missionários da Teologia da Libertação.

À luz desses anseios e escopos, é considerada como um movimento supra-denominacional, apartidário e inclusivista, dentro daquilo que se designa como “Teologia Política”. A Teologia da Libertação engloba várias correntes de pensamento que interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação das injustas condições económicas, políticas ou sociais em que a humanidade estava mergulhada no Pós-Guerra, não apenas na América Latina mas em todo o mundo. Os que a desencadearam descrevem o movimento como uma reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, com particular enfoque nos problemas sociais. Todavia, importa referir que como em todos os movimentos, logo surgem as vozes da discordância ou a oposição, mais ou menos acirrada, conforme a época e contexto. Os oponentes desta nova teologia política, recorde-se – à guisa de ideia que convém reter no sentido de se perceberem as oposições e choques que se desencadearam –, descrevem-na antes como uma forma de marxismo, de relativismo e materialismo histórico cristianizado. Aqui se desenham os muros que se levantarão entre as tendências na Igreja, entre progressistas e conservadores, muitas vezes a partir da aceitação ou não deste movimento.

Com efeito, o movimento, como se disse, nasceu numa situação política, económica e social complexa na América Latina, entre povos dominados por regimes anti-populares e ditatoriais. Estava-se também, refira-se, na época em que se deu o desenvolvimento do marxismo como instrumento de análise social: as ciências sociais, entre elas a análise marxista, eram utilizados para compreender a origem das contradições da sociedade. Mas o marxismo não foi, todavia, utilizado como ferramenta para a construção do projecto social alternativo desenhado pelos bispos em Medellín, ou pelos teólogos que abraçaram o conceito da Teologia da Libertação.

Também neste esforço de compreensão da ontogénese do movimento, assistia-se a mudanças no seio da Igreja Católica, para lá do que o próprio Concílio projectara. Como exemplo podemos citar a experiência da Acção Católica e do seu método VER-JULGAR-AGIR. Esta pedagogia ajudou na procura de uma compreensão crítica da realidade e impulsionou uma acção transformadora, que tocou fundo em muitos dos que abraçaram a Teologia da Libertação nos seus alvores. A busca de diálogo da Igreja com o mundo moderno, defendida pelo Concílio, foi também uma influência determinante para o movimento. Muitos cristãos, por outro lado, revelavam cada vez mais impaciência perante as soluções que apareciam, em plena vigência de ditaduras militares e do imobilismo de parte da Igreja em relação aos problemas e às tragédias. O desejo de eficácia por parte de alguns cristãos, perdida a sua confiança noutros métodos, fez com que abraçassem a análise marxista e tentassem adaptá-la à sua fé ou eclesiologia, perante uma situação intolerável sem saída. Era preciso renovar, desafiar e ousar, diziam!

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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