ILHAS DE SÃO LÁZARO – 9

ILHAS DE SÃO LÁZARO – 9

A mordacidade do cronista

A ardilosa trapaça recheada de subtis artifícios que o capitão Miguel López de Legazpi, “ao ver-se perdido e sem remédio”, preparou para o congénere ibérico, indo ao ponto de lhe oferecer “tudo o que quisesse” e justificando até parentescos remotos, merece da pluma pungente de tinta de Diogo do Couto a maior das ironias, “porque todos eram uns e vassalos de dois reis tantas vezes primos, cunhados, sogros e genros”. O certo é que Marramaque caiu na esparrela – no entender de Couto, que certamente pelo militar nutria certa estima – porque pensava que o opositor “tinha o coração tão limpo e singelo como o seu”. Puro engano.

López de Legazpi, um conquistador nato, herdeiro da política de ferro e fogo aplicada a eito nas terras do Novo Mundo, quando se viu com poder “fez-se noutro bordo, e começou a galantear e a mudar o propósito”. Ao sentir-se enganado, mas sempre conciliador e diplomata, Marramaque expediu missiva recordando a primazia portuguesa sobre tais domínios. Responde-lhe o espanhol que só morto dali sairia, deixando, porém, aberta a possibilidade de, “como vassalo que era de um rei tão conjunto em parentesco como o seu”, contribuir com duzentos soldados seus para ajudar os portugueses nos conflitos latentes e endémicos na ilha de Amboíno (a razão de ser de Marramaque naquelas paragens), e oferecendo até, veja-se lá, embarcações para que viajassem separados dos portugueses, “por escusarem desavenças, pelas antigas emulações” que as nações tinham uma com a outra.

Ao tentar pôr em marcha o novo e engenhoso ardil, assim uma espécie de cavalo de Troia revisitado nas águas do Pacífico, Legazpi demonstrava grande sagacidade. Ou seja, os supostos ajudantes, conduzidos ao pote do cravinho e da noz-moscada, o “ouro do Oriente”, à primeira oportunidade, apossar-se-iam dos locais estratégicos nas ilhas Malucas, livrando-as dos seus rivais no Oceano e vizinhos no Velho Continente, como mais tarde o tentaram fazer, por três ocasiões, na ilha de Tidore, embora sem sucesso.

A propósito da ingenuidade (para não lhe chamar outra coisa) demonstrada por Gonçalo Pereira Marramaque em todo o processo tece Diogo do Couto o assertivo e sábio comentário: “Cousa mui estranhada nos capitães que devem imaginar sempre a malícia e engano no peito do inimigo e vencer mais com cautelas que com armas, pelo que sofreu o capitão-mor sua mágoa e começou a tratar do que lhe convinha”. E o que convinha aqui a Gonçalo era ir acudir as cristandades de Amboíno, fruto do trabalho missionário dos jesuítas, pois esse constituía o cerne da sua missão. Lembremos a este respeito a crónica anónima aqui mencionada a semana passada aludindo à mudança de planos do capitão-mor, que em vez de ir castigar “os grandes insultos e ofensas que eram feitas aos portugueses e moradores de Ternate, e aos cristãos de Amboíno, e às Igrejas de Nosso Senhor Jesus Cristo”, optou por dirigir-se a Cebu. O cronista anónimo, cuja qualidade de escrita surpreende pela positiva, é bastamente crítico neste aspecto ao apontar a culpa ao fidalgo “por não cumprir o regimento” que lhe fora dado pelo vice-rei.

Os portugueses eram à época senhores dos mares e os seus pilotos, mestres e capitães, além das armadas do reino, concorriam também para a dos seus rivais espanhóis, e em breve far-se-iam pagar pelos seus preciosos serviços a bordo das bem apetrechadas carrancas dos homens de negócio das Províncias Rebeldes e da velha Albion. Ou seja: a sua cotação estava no auge, daí que se compreenda que no decorrer das negociações ocorridas em Cebu, nesse remoto ano, alguns dos espanhóis aproveitassem para se passar para o lado português, facto que atemorizou Legazpi, e a tal ponto de o levar a dar garrote a todos aqueles que circulassem sozinhos ou aos pares. Assim se fez, e com a maior das crueldades, para que a morte dos infractores servisse de exemplo e desencorajasse futuros desertores. O garroteamento era, já então, pena de morte bastante comum no reino de Castela.

Caminhar dissimuladamente pela praia junto aos mangais e, tirando proveito da camuflagem do arvoredo, acenar daí com uma toalha aos das naus ancoradas ao largo para que os fossem recolher era o método utilizado pelos candidatos a ingressar nas nossas fileiras. Ora, tanto o cântaro foi a fonte que descoberta acabaria a careca, e logo por acção do buliçoso mestre-de-campo de Legazpi, que utilizaria a mesmíssima receita em seu favor. Mandou posicionarem-se a resguardo do mangal cem escopeteiros, enquanto um figurante dava o combinado sinal com a toalha. Da beira do galeão saiu logo um batel para o ir buscar, como era costume, só que desta feita, ao chegar à praia, foi recebido com saraivadas de pelouros que tirariam a vida a “dois homens do mar portugueses e alguns marinheiros arábios”, tendo os restantes batido em retirada apressadamente. Legazpi, porém, não utilizara ainda todos os trunfos, pois dias depois atacou o batel da aguada, facto relatado por António Pinto Pereira e que mereceria de Couto a acutilante achega: “como os espanhóis são mais vigilantes do que nós, deu o mestre de campo sobre eles, e matou a todos e tomou o batel e lhe mandou pôr fogo à vista da armada”. Quanto à doença do beribéri, causadora de mais mortes que quaisquer dos apetrechos bélicos utilizados, o cronista e guarda-mor da Torre do Tombo descreve-a como uma “inchação de barriga e pernas, de que em poucos dias morrem, como morreram, muito e chegou a dia de dez e doze”. Couto conclui a sua crónica com nova menção à inabilidade de Marramaque que “faleceu miseravelmente, ficando devendo às partes mais de sessenta mil cruzados, que nunca se lhe pagaram”. Ou seja, toda a campanha de Cebu foi um retombante falhanço, militar e comercial (também aí se pretendia estabelecer o trato), e tudo isso porque confiou o capitão-mor num incompetente Rombo e ele próprio ingenuamente se deixou levar e não teve punho firme quando se lhe o exigia.

Joaquim Magalhães de Castro

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