Cartas do Bornéu – 7

Ofertas de betel, arak e pães-de-açúcar

Regressemos ao ano de 1521 e ao dia após a chegada de tão exóticos visitantes, devidamente assinalada ao sultão local que logo mandou às naus Victoria e Trinidad uma luxuosa canoa cuja proa arvorava uma bandeira branca e azul “com penas de pavão no topo de uma vara”. Embarcados nessa canoa – que o italiano descreve como “uma espécie de fusta ou galera” – entre outros, flautistas e percussionistas, seguindo-a no encalço duas almadias, “que são barcos de pesca”. Oito dos “respeitáveis da ilha” subiram à nau capitânia, comandada por João Lopes Carvalho, e sentaram-se num tapete preparado para o efeito no castelo da popa. Aí, os malaios presentearam os marinheiros ibéricos com um recipiente de madeira coberto com um pano de seda amarelo, repleto de betel e areca, “raízes que, depois de misturadas com flores de laranjeira e jasmim, eles constantemente mastigam”. Também lhes ofereceram duas gaiolas com galinhas, duas cabras, três jarras de vinho de arroz destilado e canas-de-açúcar. Fizeram igual oferta ao outro navio; e, findo o cerimonial, com um abraço se despediram.

Comenta Pigafetta que o vinho de arroz era “claro como a água”, mas de tal modo potente que vários elementos da tripulação ficaram embriagados. “Chamam-lhe arach”, informa. Este relato, à semelhança de tantos outros coevos, demonstra que o interdito às bebidas inebriantes entre muçulmanos é um fenómeno relativamente recente, se bem que existissem já punições bem severas para outro tipo de “pecados”, entre as quais o apedrejamento e a amputação de membros. Nesse capítulo, em abono da verdade, pediam meças na época os seguidores das religiões do livro, fossem eles judeus, cristãos ou muçulmanos.

Diz-nos o cronista que, “seis dias depois”, o rei mandou outras três canoas, também “ricamente decoradas”, com músicos “que soavam gaitas, tímbalos e tambores”. Ao chegar perto dos forasteiros os malaios saudaram-nos, “tirando os seus bonés de pano que de tão pequenos mal cobrem a parte superior das suas cabeças”, e aqueles responderam com uma salva de bombarda, “mas sem a devida carga de pedras”. Trouxeram-lhes os nativos várias delícias, todas de arroz, fossem “pedaços alongados envoltos em folhas”, “em forma de cone de pão-de-açúcar”, ou ainda do “tipo bolos, com ovos e mel”.

Ainda hoje, quem passeie pelos mercados nocturnos de Bandar Seri Begawan depara com várias bancas com iguarias de todas a cores e formatos que encaixam perfeitamente na discrição de Pigafetta. A mim, essa “forma cónica em pão-de-açúcar” faz-me lembrar os cones de melaço de açúcar que vi pela primeira vez nos mercados uigures do Turquestão chinês. Há várias versões quanto à origem do nome. A mais fiável é a de que durante o apogeu do cultivo da cana da açúcar (séculos XVI e XVII), uma vez espremida a cana, fervido e apurado o caldo, a massa daí resultante era colocada numa forma de barro cónica denominada “pão-de-açúcar”. Essa a razão de mais tarde ter sido apelidado desse modo o mais famoso e peculiar penhasco da baía da Guanabara. Falta saber se os portugueses levaram a técnica da Ásia ou se, pelo contrário, a trouxeram para cá.

Após fazerem as ofertas em nome do sultão, os nobres malaios informaram os nautas acerca da satisfação daquele por terem escolhido “os seus domínios para o abastecimento de água e madeira” – a fundamental aguada – e que “poderiam comerciar o que quisessem com os ilhéus”. Face a resposta tão positiva, decidiram os expedicionários constituir uma delegação, “em número de sete”, que levasse “presentes ao rei, à rainha e aos ministros”. Para o sultão, “um casaco turco de veludo verde, uma cadeira de veludo roxo, cinco braças de pano vermelho, um boné, um copo de vidro com tampa, uma secretária dourada e três cadernos de papel”. Para a rainha, “três braças de pano amarelo, um par de sapatos prateados e uma caixa de prata cheia de alfinetes”. Para o governador, “três braças de pano vermelho, um boné e um copo de vidro dourado”. Finalmente, para o arauto, que tinha vindo na canoa, “um pano turco, uma veste vermelha e verde, um boné e um caderno de papel”. Quanto aos sete personagens principais que o acompanharam, “para cada um algumas jardas de pano, um boné e um caderno de papel”.

Preparados os presentes, a delegação embarcou numa das três canoas e rumou a terra, tendo ancorado na ilhota artificial de Terindak, uma área de 250 metros quadrados a uma elevação de quase quatro metros, coberta hoje por espessa vegetação que praticamente impede a observação do vai-e-vem das velozes embarcações que sobem e descem e ligam as margens do rio Brunei, mas mostram ser perfeito esconderijo para as lontras que ali abundam.

Outrora este era um posto de observação e ancoradouro de madeira e cana, entretanto reconstruído em cimento. Restos do antigo cais, pedaços de traves e tábuas, jazem enterrados na lodo negro do mangal ou encontram-se protegidos por abrigos com tecto de zinco e respectiva informação numa placa de metal. Análises de Carbono 14 efectuadas aos cacos de cerâmica chinesa ali encontrados (ainda hoje podemos recolher pedaços similares se esgravatarmos um pouco a terra) revelaram aos arqueólogos, responsáveis pelas escavações efectuadas na década de 1980, datas situadas algures nos séculos XV e XVI.

Joaquim Magalhães de Castro

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