Caminhos do Brasil

Cidade do Pelourinho e do Acarajé

Um gigantesco templo da Igreja Universal do Reino de Deus com pórtico romano, um exagero de luz e cimento acabado de inaugurar, é a primeira imagem que me oferece Salvador da Baía, antiga capital do Brasil, cadinho de todas as fusões etnico-culturais, terra do candomblé e dos orixás, Património da Humanidade desde a década de 80 do século XX.

O ambiente da rodoviária local é menos confuso do que o habitual. Mas isso deve-se, com certeza, ao Sol radioso e à proximidade de algumas das melhores praias do País. Entro, definitivamente, no domínio da mulata. E ela anda por aí, de calção curto e camisa de laço. A paragem do pequeno autocarro que me levará ao centro histórico de Salvador, onde estão a Igreja de São Francisco e a Igreja da Venerável Ordem Terceira Secular de São Francisco, fica junto a uma avenida ligada por uma ponte pênsil onde se comprimem pessoas quais formigas num carreiro. Dificultando a entrada e a saída, vendedores ambulantes transaccionam um pouco de tudo; de pares de sapatos a DVD piratas. A ponte parece-me tão frágil que quando a atravesso cruzo os dedos esperando que não ceda naquele momento. Nem em qualquer outro momento, já agora.

Rumo ao Centro Histórico, via Vale de Bonocô, rota que evita as favelas, divisória das zonas nobres e pobres da cidade. Junto à costa deparo com luxuosos hotéis e uma legião de cultores de corpos musculados fazendo “jogging” no passeio marítimo. Avisto o Morro do Cristo e, mais adiante, o Farol da Barra e o Forte da Barra, no ponto mais ocidental da cidade. Daqui a estrada envereda de novo para Leste, entrando na Baía de Todos os Santos, que durante muito tempo esteve ligada ao nome da cidade. Esta enseada urbana culmina na ponta de Humaíta, com farol, fortim e uma igreja onde anualmente decorre a cerimónia da Lavagem do Bonfim, o mais importante evento do calendário religioso citadino.

O Solor de Unhão, construção do século XVII, abriga o Museu de Arte Moderna e o Parque das Esculturas, excelentes exemplos do riquíssimo legado arquitectónico de Salvador da Baía, que não se limita ao centro histórico. Para Sul, estendem-se uma série de praias, pouco referenciadas. Para Norte, nomes bem conhecidos dos amantes do “surf” e demais desportos náuticos. Praias da Amaralina, do Jardim de Alah, da Armação, do Corsário. Depois, Itapuá. Se traçarmos uma linha recta para o interior deparamos com o aeroporto internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães, considerado o ponto zero. Estamos a uns quarenta quilómetros do centro. É a partir daqui que se medem as distâncias na capital do Estado da Baía.

 

TARDE EM ITAPUÁ

Quem for até aos areais de Itapuá, levando no ouvido a imortal canção de Vinicius e Dorival, com certeza sairá dali decepcionado. Passar uma tarde em Itapuá pode ser uma experiência algo claustrofóbica, tal é a quantidade de banhistas e pares românticos que ali se concentram. É o preço da fama.

Há ainda outras praias reputadas. Juá, Arembempe – onde nos anos 60 passava temporadas Janis Joplin, hoje aldeia “hippy” permanente – Guarajaba e Itacimirim, junto ao rio Pojuca. Na margem norte deste rio situa-se a Fundação Garcia D´Avila, considerada a primeira grande edificação portuguesa no Brasil – exemplar único nas Américas de um castelo de estilo medieval. Dizem que esta foi a sede do maior latifúndio do mundo. Na foz do Pojuca, junto à Praia do Forte, está implementado o projecto de Tamar, que visa a preservação das tartarugas e do seu habitat.

Por muito que me custe, não vim aqui para desfrutar das idílicas praias. Se o fizesse certamente optaria por me acantonar algures na ilha de Itaparica, onde não faltam bons lugares para se ser feliz com pouco.

A Barra é um ponto de charneira em termos geográficos. A partir daqui há que subir pela Ladeira da Barra até ao Campo Grande e à Graça, através da Avenida Sete de Setembro. Ao avistar a Praça de Castro Alves sei que o Pelourinho é já ao dobrar da esquina.

Também na Baía, à semelhança do Rio, os portugueses tentaram recriar uma Lisboa nos trópicos, como o comprovam a toponímia, os edifícios e o traçado das ruas. Mais em Salvador do que no Rio, onde há setenta anos houve um processo de destruição de tal forma maciço que acabou com a alma histórica cidade. O que resta agora, como já aqui mencionei, são pontos sem um ponto de união.

Os prédios em redor da Travessa das Vassouras continuam desabitados e não param de degradar-se. O imponente Palácio do Rio Branco, património do século XVI, abriga hoje a Fundação Cultural do Estado e o Memorial dos Governadores. Bem mais sóbrio é o edifício da prefeitura, muito ao estilo dos congéneres lusos, típicos do Estado Novo, erguido em honra do fundador da cidade, Tomé de Souza, que em 1549 assumiu o cargo de primeiro governador-geral do Brasil. Do outro lado da rua, de costas viradas para o Elevador Lacerda, está a sua estátua em bronze, obra do escultor Valuizo Bezerra. Ao governador coube a missão de edificar uma cidade fortaleza para proteger os domínios portugueses na região. Foi precisamente no local que percorro agora que se ergueram os primeiros edifícios, com pedra trazida directamente da metrópole, que nos anos 80 ajudariam a Unesco a tomar a decisão de atribuir a Salvador da Baía o título de Património da Humanidade.

MEMÓRIAS DE JORGE AMADO

Caminho apressado rumo ao Pelourinho por ruas estranhamente quase desertas, pois a noite mal acaba de cair. Se me abeirasse dos muros poderia olhar a parte baixa da cidade, que existe por contraposição à parte alta cujo cerne é a Praça da Sé e o Pelourinho. Depressa chego à Rua da Misericórdia (a sede do Posto do Turismo é uma horrorosa construção de cimento sem qualquer cabimento num espaço histórico destes) e depois ao Solar Berquó, datado do século XVIII, onde funciona hoje um museu. Duas estátuas decoram a praça em frente ao Palácio Arquiepiscopal frequentada por muitas mães com crianças, homens-estátua e vendedores de balões ou de tabaco que transportam a respectiva mercadoria numas carrinhas equipadas com colunas de som potentíssimas. É a Rua Augusta cá do sítio. Uma dessas estátuas representa o bispo Pero Fernandes Sardinha; a outra estátua é a do guerreiro Zulu dos Palmares, símbolo da luta pela emancipação dos negros.

Segue-se a Igreja da Misericórdia, a mais imponente estrutura do Terreiro do Jesus, outro dos marcos da cidade. Este era o local de culto dos jesuítas e raramente está aberto ao público. A riqueza da decoração dos tectos e paredes interiores contrasta com a sobriedade do exterior.

Nas esplanadas em redor do chafariz oitocentista do afamado terreiro vende-se suco de coco e cerveja e as coloridas baianas de saiote rodado incitam-nos a que provemos do seu acarajé, inspiradas pelo ritmo hipnótico do berimbau que faz rodar os praticantes da capoeira. Há sempre movimento neste local, até altas horas da noite.

Numa das salas da Igreja de São Domingos, no lado oposto da Igreja da Misericórdia, uma banda de jazz faz uma apresentação fora do comum. Já tinha ouvido música clássica no interior de uma igreja, mas jazz é a primeira vez.

Rodeiam o Terreiro de Jesus a Igreja de S. Pedro dos Clérigos e os edifícios novecentistas da antiga Faculdade de Medicina e do Museu de Arqueologia e Etnologia Afro-Brasileiro.

Consulto o rascunho com os endereços das três pensões. A primeira situa-se na rua Gregório de Matos, mesmo em frente do largo Tereza Baptista, personagem do romance de Jorge Amado “Tereza Baptista Cansada da Guerra”. É um dos quatro largos do Pelourinho com palcos permanentes onde à noite, e com bastante frequência, se desenrolam espectáculos musicais gratuitos. Aqui encontram os baianos e visitantes uma forma democrática de passar umas boas horas. Uma das características de Salvador da Baía é o constante som dos tambores de Oludum, que tanta batucada inspirou por esse mundo fora.

O empregado argentino da pousada é honesto na apreciação do local.

«– Dia sim, dia não, a praça aí em frente é muito animada. E a festa prolonga-se pela noite dentro», diz ele, alertando-me para a possibilidade de ser perturbado no meu descanso caso decida ficar no local que gere.

Como considero que nada há pior do que levar com música quando tudo o que se almeja é o silêncio, agradeço-lhe a honestidade e opto pelo Hostel São Jorge, na rua Alfredo de Brito, em pleno Pelourinho, com vista para a entrada da Biblioteca da Faculdade de Medicina que está a ser restaurada com dinheiros espanhóis e será dentro de algum tempo um Museu de Farmácia.

As traseiras dessa pensão dão para o Largo Quincas do Berro de Água, outro dos personagens dos romances de Amado. Por uma nesga entre os prédios, onde penetra a bendita brisa, avisto a Baía de Todos os Santos. Sem a dita brisa (ou sem uma forte e prolongada chuvada) não há ventoinha capaz de mitigar o sufoco.

O São Jorge está às moscas. Tenho, por isso, todos os beliches de um dos quartos por minha conta. Caio redondo num deles (o mais próximo da ventoinha), pronto para dormir.

Joaquim Magalhães de Castro

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