Ao som do Dara Portugis
Assistia-se naquele Domingo a um inusitado movimento de furgonetas que chegavam com pessoas das povoações vizinhas. Era dia de mercado. Um mercado frequentado também pelos soldados ali estacionados, que faziam as compras de arma automática a tiracolo, não fosse o diabo tecê-las.
Lembro-me de um dos feirantes utilizar os seus dotes de violinista para melhor vender a mercadoria. Sabia que o instrumento que tocava – biola, em bahasa – fora ali introduzido pelos lusos navegadores. Estava então muito em voga a música Dara Portugis, da autoria de Sabirin Lamno, filho da terra, que abordava precisamente a saga dos portugueses de Lamno.
Lembro-me de um bálsamo contra as dores reumáticas feito a partir de malagueta, extremamente eficaz, a cinco mil rupias cada frasquinho. Para demonstrar a sua eficácia, o vendedor untava os olhos, sem verter qualquer lágrima. Proclamava, filosoficamente:
«– Não tenho mais lágrimas para verter».
Lembro-me das bancas dos vendedores de tabaco de enrolar e das dos curandeiros. Metade dos chás e mezinhas destinavam-se a melhorar o desempenho sexual dos machos, o que não parecia ser problema na aldeia, a julgar pelo elevado número de crianças ali presentes, como a miudita de tez pálida, «uma dessas tais portuguesas», para a qual As Rasman me chamara a atenção.
«– A elite de Jacarta e os detentores de cargos públicos de outras províncias têm por hábito procurar mulheres em Lamno, pois são bonitas, discretas e têm bom carácter».
Na verdade, não se avistavam muitas dessas mulheres que, coincidência ou não, raramente usavam véu, contra a tradição local. Algumas delas, mais velhas, deixaram-se fotografar, ao contrário de uma beldade que se refugiou dentro de portas, apossada de uma súbita timidez. Afinal, nem todas as mata-biru tinham sido “raptadas” pelos ricalhaços de Jacarta.
Nesse mesmo dia conheci Surya Wibaura, um capitão do TNI, exército indonésio, natural de Macassar, capital das Celebes, pátria dos lendários bugis, povo de navegadores. Declarava ter estado na fronteira com Timor-Leste numa patrulha conjunta com as forças da UNTAET. Em comissão de serviço em Aceh há mais de um ano, sem ver a família, sentia que chegara a altura de partir, embora soubesse que essa decisão pertencia aos seus superiores hierárquicos.
«– Queremos todos que isto termine para regressarmos a casa», confessava.
Toda aquela incerteza e a perigosidade das tarefas diárias traziam angustiado o bugi das Celebes, o menos militar dos militares, ou assim me pareceu. Nada nele era bélico. Nem as palavras, nem a postura. Como o próprio dizia:
«– Sinto-me como o paraquedista que sabe que vai levantar voo num avião, mas que não aterrará a bordo…».
Falava com conhecimento de causa. Surya Wibaura liderava um batalhão de 100 paraquedistas, o equivalente aos boinas-verdes norte-americanos, que diariamente patrulhava os cantos mais recônditos da densa selva.
«– A situação é agora mais calma, mas esta continua a ser uma zona GAM. Na costa oeste o número de guerrilheiros não ultrapassa as duas centenas, mas aqui são mais, muito mais. Não sabemos quantos».
Graças aos informadores que tinha a soldo, Surya sabia que os independentistas estavam bem organizados, se escondiam na mata e raramente utilizavam veículos. Quando o faziam recorriam a viaturas furtadas.
Quanto ao epílogo do conflito, não estava nada optimista.
«– Vão ser precisos muitos anos. É um problema que levará imenso tempo a resolver».
Afinal, o conflito terminaria mais cedo, num acordo entre as partes forçado por uma catástrofe natural. Mais uma ironia do destino.
«– O posto que vos controlou pelo caminho foi atacado na semana passada», lembrava Surya.
De facto, num dos diversos controlos a que fôramos sujeitos durante o percurso de Banda até Lamno, os militares perguntaram-me se falava Indonésio e de onde era, embora não me tivessem pedido os documentos. Não se passou o mesmo com um outro passageiro, em quem os soldados inquisitivamente fixaram o olhar enquanto lhe iam fazendo perguntas como quem desfere dardos. Da conversa apenas percebi a interrogação «– GAM?». Certamente, tentavam tirar algum coelho da cartola.
De vez em quando avistavam-se militares embrenhados na mata que rodeava a estrada, confundindo-se com a folhagem, graças aos camuflados. Andavam, segundo me dissera um dos passageiros, «à caça dos GAM».
Da parte dos achéns, cidadãos comuns, os desabafos e as manifestações de desagrado iam surgindo, pouco a pouco, sempre a medo, nunca de forma directa. Aparentemente era tudo cumprimentos junto aos postos da Brimob e da Kostrad, outra das forças do TNI destacada na região. Ciclistas, motociclistas, motoristas de carrinha, camioneta ou camião, todos, mas todos, abrandavam quando passavam diante dos obstáculos erguidos pelos militares, acenando com um largo sorriso de deferência. O melhor era manterem-se nas boas graças da tropa. Que ali estava nitidamente em vantagem.
Entre os magalas, havia uns mais rambos do que outros, mas todos requisitavam, com um simples grito, motorizadas a quem passava. O visado parava de imediato e, solícito, emprestava o veículo. Nunca era por muito tempo.
«– Os habitantes locais gostam da nossa presença», admitia, embora sem grande convicção, o capitão Surya.
Como que a confirmar as suas palavras, reparei que duas meninas brincavam com dois soldados, com se de irmãos ou tios se tratassem. Porém, por precaução, as AK-47 repousavam-lhes nos joelhos. A poucos metros, um outro militar tocava guitarra e cantava para uma rapariga de véu na cabeça e já com idade para namorar. Era Domingo e o tempo estava mais para romance do que para disparos.
«– Somos soldados, mas amantes da paz», garantia o capitão.
Se a população gostava ou não da sua presença era o que ficava por saber. Certo é que, quando paguei a conta dos cafés e das lumpias que consumimos enquanto conversávamos, o dono do botequim de berma de estrada que nos serviu apresentou-me um papelinho com um total de nove mil rupias, um montante bastante mais elevado do que costumava pagar.
No posto em frente havia quem ouvisse música, jogasse takraw (voleibol de pé) ou simplesmente não fizesse nada. No único estúdio fotográfico da aldeia, soldados posavam para a posteridade. Deviam aborrecer-se de morte. Ainda por cima a sala de cinema local estava encerrada desde o início do conflito…
Joaquim Magalhães de Castro