O rajá de Pandu
O reino do Cocho assentava, na época, a sua capital na cidade de Hajo. Embora a tivessem avistado, no lado norte do Brahmaputra, não era esse o destino dos padres, antes Pandu, centro nevrálgico de uma região recentemente conquistada pelos mogóis ao reino de Assam, cujo território estendia os seus limites a leste dali. Como escreve Cacela, “é Pandó terra não muito grande, mas mui frequentada, e de não se alargar muito pela terra adentro, mas estar estendida na praia deste formoso Rio do Cocho, é a causa a guerra que tem de contínuo com os assanes que confinam com Pandó, terra última do Reino por aquela parte”.
Na verdade, Pandu situava-se na orla sul do Brahmaputra, o referido “rio do Cocho”, a dezena e meia de quilómetros de Hajo. Em Pandu os jesuítas obtiveram as primeiras informações acerca do mítico Cataio pela voz de um uigur do reino de Kashgar, como nos informa Cacela: “(…) estendendo de nós e das cartas que lhe trouxemos, que a causa da nossa vinda era passar ao Cataio, tomadas as informações se não achou ali quem tivesse notícia daquele Reino mais que o um mouro, pessoa grave que nos disse ficar além de uma cidade que se chama Coscar (…)”.
Também o rajá local, de nome Satargit, “um nativo de Busna”, comandante-geral do exército mogol na frente do Assam, recebeu-os muito bem, e fez até questão de os acompanhar na obrigatória visita de cortesia ao seu novo senhor mogol, Bir Narayan – “o Liquinarane” da Relação de Cacela – que vivia num palácio em Hajo, também ele dependente da indiscutível e imparável autoridade de Akbar, o sincrético imperador dos mogóis, protector e amigo dos jesuítas que na corte do monarca, em Fatehpur Sikri, a umas centenas de quilómetros a norte de Agra, asseguravam residência e capela.
Na realidade, a moderna Guwahati não passa de uma extensão territorial da antiga Pandu, hoje mero bairro periférico banhado pelo Brahmaputra. A sua margem sul é o primeiro e único local de visita, logo após termos alugado carro e o motorista que nos transportará no dia seguinte até Cooch Behar. Bem procuro, esperançado, vestígios reveladores da importância da Pandu de outrora… Em vão. Confronto-me, tão só, com um amontoado de casas de chapa intervaladas por um ou outro edifício de cimento ao longo de um pedaço de borda do sagrado Brahmaputra, alvo de continuadas oferendas e cerimónias às divindades do panteão hindu. Ali repousam, ao abandono, várias figuras em esferovite de uma procissão já efectuada. Duas delas representam Kali, “destruidora e renovadora dos mundos”, nas suas versões azul e negra. Se varia na cor, igual se mantém na essência. A mais usual efígie de Kali apresenta-a com quatro braços e quatro mãos, metáforas da criação e do apocalipse. As duas mãos direitas, de palmas abertas, abençoam; as mãos esquerdas seguram uma cabeça decepada e uma espada coberta de sangue, representando esta o corte com a escravidão da ignorância e do ego, simbolizada pela cabeça separada do corpo. A língua de fora expressa constrangimento, pois o pé da deusa assenta no peito do consorte Shiva, imobilizado no solo. Retrata o episódio em que Kali, totalmente fora do controlo, no campo de batalha, prestes a destruir o universo, é confrontada com Shiva, que se deita a seus pés para receber a sua bênção mas também para acalmá-la. Os hindus de Bengala interpretam o gesto da língua como uma súbita “vergonha” de Kali face ao seu acto. Morder a língua é sinal de modéstia, um meneio comum entre os habitantes dessa província. Kali é representada ocasionalmente com um sorriso no rosto e sempre com uma grinalda de cabeças cortadas em redor do pescoço. Nalgumas representações da divindade chegam a totalizar cinquenta, tantas quantas as letras do alfabeto do Sânscrito. A adoração a Kali terá chegado ao Ocidente, algures na Idade Média, pela mão do povo cigano. Há quem estabeleça paralelos entre o culto de Kali e as cerimónias da peregrinação anual em homenagem a Santa Sara, também conhecida como Sara-la-Kali, em Saintes-Maries-de-la-Mer, no sul da França. Se as compararmos com as da Índia, percebemos que esse culto védico milenar foi transferido e incorporado na crença cristã dos ciganos.
Junto às Kalis, há resquícios de um pequeno Ganesh, o deus-elefante, e de uma Laksmi, deusa da boa sorte, e ainda uma curiosa personagem feminina, de cabelo crespo e com o habitual terceiro olho desenhado na testa, montada num burro todo catita. É o kitsch indiano no seu melhor.
Sentado na terra arenosa um devoto reza de mãos juntas em frente a uma bacia com água de coco e um pequeno ramo de loureiro e faz aquilo que o brâmane, de cócoras, lhe recomenda. No final da oração, o banho ritual se impõe e as sobras devem ser entregues aos pássaros, que demoram em chegar. Aliás, não se avista uma única ave, facto raro junto a um rio desta dimensão. Flutuando no leito avistam-se enormes novelos de espuma, dessa que é fruto da atracção das moléculas e não do comportamento desregrado e imoral do bicho humano. Natural será, a dita escuma, mas tem um aspecto pouco apetecível, mais parecendo uma qualquer forma de poluição industrial. Varado, a apodrecer, um antigo ferrie e, na água, um outro que mais parece habitação do que meio de transporte. Chega, entretanto, uma barcaça e é nela que duas pessoas, uma bicicleta e uma cabra fazem a travessia até à ilha em frente, noticiada no texto de Estêvão Cacela. Confesso que me surpreende a fraca presença de embarcações no leito manso do Brahmaputra.
Joaquim Magalhães de Castro