A Secreta Transmissão da Fé

Os “Cristãos Escondidos” no Japão – V

A abertura Meiji ao exterior parecia fluir em todas as vertentes da vida moderna. Mas não no aspecto religioso. Este chocava com o nacionalismo crescente no País e a ligação entre o Estado e as religiões tradicionais japonesas, o Xintoísmo e o Budismo. Parecia não haver espaço para o Cristianismo. As pressões externas redobravam-se a cada ano, as críticas eram ásperas perante o tratamento dado aos cristãos e aos missionários no País que se abria ao exterior. A opinião pública internacional criticava cada vez mais violentamente o Japão. Onde os ataques às igrejas se sucediam, o flagelo anti-cristão persistia.

O olhar internacional sobre o Japão roçava já o desprezo, na década de 70 do século XIX. A situação era incómoda, mas principalmente para os cristãos, que a sofriam na pele e no sentimento de japoneses que eram afinal, mas não tão iguais como os seus compatriotas não-cristãos. Alguns ventos internos sopravam, no entanto, noutra direcção: o vice-cônsul nos Estados Unidos, Mori Arinori (1847-1889), escrevera então um texto em que opugnava pela liberdade religiosa no Japão, argumentando que era impossível manter mais tempo a política de intolerância religiosa. Shimaji Mokurai (1838-1911), um monge budista famoso e influente no País, escrevera também um texto crítico a defender a separação do Estado e da Religião, a clamar pela liberdade religiosa e a defender as ideias de Arinori. A ala conservadora do Governo japonês, todavia, pouca atenção deu a estes textos, reforçando o Xintoísmo como religião identitária nacional.

Não estavam fáceis as coisas. Apesar de, por exemplo, muitos cidadãos terem perdido o medo do Cristianismo e dos seus “perigos” para o Japão e terem começado a critica ao édito de irradicação dos cristãos do País.

 

A esperança renasce

O Governo teimava em não remover o édito. Envolvia-se, por outro lado, em conflitos com os budistas, afunilando o sentimento religioso nacional pelo Xintoísmo. A repressão caiu mesmo sobre o Budismo, em moldes parecidos com o que existia em relação aos cristãos.

Mas eis que chega um telegrama de Berlim, enviado pela já referida missão diplomática de Iwakura, que dizia que se os cristãos de Urakami não fossem libertados, não haveria esperança para a revisão dos tratados e a missão acabava, sem frutos alguns. Em 24 de Fevereiro de 1873, em consequência de todas as pressões internacionais, um édito imperial ordenava a remoção de quaisquer formas de banimento dos cristãos. Acabava a política de supressão do Cristianismo no Japão e nascia a liberdade religiosa. A evangelização do País renascia e assumia os moldes que depois se desenvolveriam. Os cristãos espalhados pelo País e proibidos de exercer a sua fé voltavam às suas comunidades de origem e passavam a professar livremente o seu credo.

Subsistia, porém, um artigo (nº 28) na Constituição Meiji que deixava pairar ainda ameaças a essa liberdade e até fazia manter a obstaculização da mesma, recordando que existiam regras para a actividade religiosa e construção de templos que não fossem do Xintoísmo ou do Budismo. Até 1899 vigorou este artigo, quando então se deu total liberdade de pregação, culto e erecção de templos cristãos. Mas leis a proteger a completa liberdade e a estabelecer o princípio de separação do Estado e da Religião só na Constituição de 1946 (artº 120), depois da Guerra do Pacífico (ou Segunda Guerra Mundial).

As perseguições de 1869 tinham dispersado cerca de três mil e 300 cristãos, um ano depois da dispersão forçada de algumas centenas. Era preciso reunir todos estes católicos japoneses. Em 1873 começou esse processo, que se foi fazendo paulatinamente. A região de Nagasaki começou a ficar polvilhada de pequenas igrejas, cada uma delas com uma comunidade alegre e perseverante. Muitos exilados recomeçaram, no seu regresso, a construir a catedral da Imaculada Conceição de Urakami, que se completaria em 1895 e que seria pulverizada pela explosão atómica de Nagasaki em Agosto de 1945, pois estava no hipocentro da mesma.

A Igreja no Japão conheceu também um forte crescimento desde então, graças à chegada de levas de missionários vindos de todo o mundo. Estes descobriam todos dos dias novas histórias ou novos “cristãos escondidos”, dezenas de milhares provavelmente, que se tinham escondido em torno de Nagasaki e nas ilhas adjacentes (como o arquipélago de Goto). Alguns retornariam oficialmente à Igreja Católica Apostólica Romana. Para tal, renunciaram às suas práticas sincréticas e não ortodoxas. Outros optaram por permanecer fora da Igreja Católica, mantendo uma existência, ainda que livre, idêntica aos Kakure Kirishitan (“Cristãos Escondidos”), com as suas próprias crenças tradicionais e sincretismos, mas na condição de “Cristãos Separados” (os Hanare Kirishitan 離れキリシタン). Os seus descendentes afirmavam que queriam manter a religião com os costumes dos seus antepassados, tal como estes a mantiveram. Era uma opção difícil, a manutenção de comunidades e rituais não tinha sentido agora que existia liberdade religiosa, pelo que muitos se converteram ao Budismo e ao Xintoísmo. Mas é curioso que por vezes se tenha dado o regresso ao Cristianismo católico, como por parte de alguns jovens pertencentes a antigas famílias de Kakure Kirishitan, que se converteram e foram baptizados em Nagasaki pelo Papa São João Paulo II, na sua visita apostólica ao Japão em 1991.

As comunidades de “Cristãos Separados” ainda existem, dispersas e envelhecidas, em vias de extinção. Praticam cerimónias antigas do tempo da clandestinidade, mas cada vez menos. Roma nunca as considerou heréticas, diga-se, respeitando os seus rituais e as circunstâncias em que se faziam, sem intenções cismáticas ou sequer de protesto ou rebelião contra a Igreja. Apenas foram ditadas pelo contexto e assim se mantiveram, merecendo o respeito dos demais cristãos. Hoje em dia já não são vistos como uma ameaça para a unidade do País, embora continuem a ter uma conotação de “estrangeiros”.

A comunidade católica japonesa conta cerca de meio milhão de fiéis, menos de um por cento da população do País (cerca de 127 milhões de habitantes), que é predominantemente budista (71 por cento) e xintoísta (quinze por cento). Os protestantes são também uma minoria. Existem dezasseis dioceses no Japão: três arquidioceses, Tóquio, Nagasaki e Osaka; e treze dioceses, Fukuoka, Hiroshima, Kagoshima, Kyoto, Nagoya, Naha, Niigata, Oita, Saitama, Sapporo, Sendai, Takamatsu e Yokohama.

É importante não esquecer aqui o papel dos jesuítas portugueses e depois as ordens mendicantes hispano-filipinas na evangelização do País, no século XVI, os seus mártires e santos, a resistência resiliente e depois a obra das Missões Estrangeiras, em que se destaca o monsenhor Petitjean, e mais tarde outros, como Pedro Arrupe SJ (1907-1991).

Vítor Teixeira 

 Universidade Católica Portuguesa

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