O mastro do navio
Deixámos a semana passada os sobreviventes de Hugli em frenética fuga rio abaixo, perdendo no processo várias barcaças para o inimigo mogol; preservando outras tantas. Tinham até ultrapassado já o pontão e a corrente de argolas de ferro. Porém, ao chegar junto à aldeia de Betor (actual Jardim Botânico de Calcutá), 25 milhas a sul de Hugli, depararam com um último obstáculo: uma passagem estreita barrada por nova corrente de argolas de ferro. Navegável, apenas uma nesga de rio junto a uma das margens. Ali os aguardava um batalhão mogol munido de pesada artilharia. O momento seguinte seria o mais terrível da longa batalha! Não obstante, a flotilha, ou o que restava dela, conseguiu passar e continuar a descer o Hugli em direcção à foz até chegar à ilha de Sagar, sessenta milhas mais adiante.
Vários episódios da conquista de Hugli, em 1632, ficaram imortalizados, com texto e imagens, numa série de vitrais no santuário reservado à Senhora da Boa Viagem no terraço da Basílica da Nossa Senhora do Rosário, em Bandel. Graças a eles fico a saber que “quatro frades” pereceram durante o saque ao mosteiro agostinho, tendo sobrevivido um tal João da Cruz. Outro episódio ali lembrado é o de Tiago, ardente devoto da Senhora da Boa Viagem, que no momento da fuga levou com ele uma imagem Sua. Infelizmente, seria atingido por uma flecha inimiga, e num ápice, abraçado à estátua, submergiu nas escuras águas do rio. De acordo com esta versão local dos acontecimentos – provavelmente um misto de factos reais com façanhas lendárias – frei João da Cruz e “alguns milhares”(!?) de residentes foram enviados para o forte de Agra onde lhes seria decretada, por ordem directa do Shah Jahan, a pena de morte por esmagamento sob as patas de elefantes. Porém, no momento da verdade, um dos paquidermes pegou no frade com a tromba e, em vez de o atirar ao chão e o pisotear, conduziu-o cuidadosamente à presença do monarca mogol, ajoelhando-se reverencialmente como quem pede clemência. Impressionado por “tamanho milagre” e incentivado pela turba que assistia ao espectáculo, Shah Jahan decidou libertar todos os prisioneiros. Não só lhes poupou a vida, como, em 1633, os autorizaria a regressar a Bandel (o bairro de Hugli onde viviam) e a reconstruir as casas onde sempre tinham vivido.
Shah Jahan, além de financiar a reedificação da igreja, também disponibilizou terreno suplementar que permitiria um alargamento considerável do complexo religioso. No decorrer das obras, frei João da Cruz terá escutado, a meio da noite, uma voz familiar. Era o devoto Tiago, chamando-o das águas do rio e anunciando que a “Nossa Senhora estava de volta”. Julgou o dominicano tratar-se de um simples sonho. Mas Tiago insistiu, afirmando que fora Ela quem salvara os cristãos de Hugli de uma morte certa. Na manhã seguinte, um grupo de pescadores locais entrava jubilantes na cidade exibindo uma estátua da Virgem clamando que a “Guru Maa” estava de volta.
O político liberal inglês – também advogado, jornalista, historiador e escritor – Evan Cotton, na sua obra “Calcutta: Old and New, The Century in India 1800-1900”, publicada pela primeira vez em 1909, até hoje referência maior no que à história daquela megapólis diz respeito, escreveu o seguinte apontamento: “A igreja portuguesa, a principal atracção de Bandel, é o mais antigo lugar de culto cristão em Bengala. Foi fundada em 1599, ano em que a rainha Elizabeth sancionou o estabelecimento da Companhia das Índias Orientais. O edifício seria totalmente queimado durante o ataque mogol a Hugli em 1632. A pedra angular com a data de 1599, no entanto, manter-se-ia e acabaria por ser incorporada no portão da nova igreja erguida por João Gomes de Soto, em 1661. É dedicada a Nossa Senhora do Rosário e englobava um mosteiro ocupado por frades agostinhos, tendo o último deles falecido em 1869. Os católicos locais usufruem ainda, isentos de quaisquer custos, de 380 dos 777 bigghahs [medida utilizada no subcontinente indiano] inicialmente concedidos por Shah Jahan. Em Novembro, durante a novena a Nossa Senhora da Boa Viagem, a igreja enche-se de peregrinos”.
Saliente-se que ainda hoje isso acontece. E muitos desses peregrinos são hindus, muçulmanos e budistas. Ali se reúnem para agradecer a Nossa Senhora do Rosário e celebrar os seus milagres.
Há ainda um outro interessante episódio associado à igreja de Bandel. Em 1655, aquando dos festejos que assinalavam o quinto ano de existência da nova igreja, surgiu na barra do rio Hugli um navio português de grande dimensão. Vinha muito danificado, pois tivera de se haver com forte borrasca no Golfo de Bengala e o seu capitão, homem muito devoto, prometera à Virgem um dos mastros do navio se todos sobrevivessem. Assim aconteceu e o marítimo cumpriu com a palavra. Pouco depois de atracar no cais de Hugli mandou cortar o mastro da mezena e ofereceu-o à cidade. Esse mastro seria implantado à entrada do templo e ali se manteria até 9 de Maio do 2000. Um poderoso ciclone derrubou uma árvore que caiu em cima do mastro partindo-o em dois. Foi como se a tempestade que antes afectara a embarcação no golfo de Bengala tivesse regressado para concluir o trabalho deixado a meio… Os restos do mastro seriam depositados numa gigantesca caixa envidraçada embutida numa parede, e ainda hoje aí se encontram para que o possam apreciar todos os visitantes.
Joaquim Magalhães de Castro