Nesta minha primeira crónica do ano de 2017 pensei falar-vos do efeito económico, no mundo em geral e nos Estados Unidos em particular, provocado pelas declarações triunfalistas de Donald Trump, ao aumentar as especulações dos mercados financeiros, em fazer subir as taxas de inflação e consequentes juros nos mercados mundiais, nomeadamente nos da União Europeia. Neste momento teme-se as consequências directas sobre Portugal, onde os juros da dívida pública já ultrapassaram a barreira psicológica dos 4%, nas dúvidas sobre se o Banco Central Europeu vai continuar a comprar títulos portugueses e se a agência de notação financeira DBRS vai continuar a considerar o País acima de “lixo”, continuando a fazer-nos beneficiar do programa de compra de dívida do BCE.
Muitas dúvidas sobre o ambiente externo que condiciona o futuro próximo das finanças públicas, às quais se juntam algumas sombrias perspectivas internas, tendo em consideração o comportamento dos actores políticos nacionais (mais precisamente dos que apoiam parlamentarmente o Governo) em vésperas de eleições autárquicas.
Mas tudo isso terei ocasião de comentar numa outra ocasião.
A notícia que mais impacto teve, nestes primeiros dias de 2017, foi a morte de Mário Soares!
Pode-se gostar ou não deste personagem que marcou a história de Portugal depois de Abril de 1974, mas ninguém pode deixar de reconhecer a sua importância na construção da democracia parlamentar e pluralista em que vivemos hoje. Muitos daqueles que abertamente o condenam, tantas vezes por motivos fúteis e na perspectiva comparativa ao mito inexistente do homem perfeito, fazem-no porque Soares lutou para que pudessem agora exprimir-se livremente.
Os refugiados das ex-colónias, face às difíceis circunstâncias em que regressaram a Portugal, são compreensivamente críticos em relação a Soares, mas nenhum político, com a importância histórica de um Mário Soares, pode ser avaliado correctamente fora do contexto em que viveu e exerceu a sua actividade política.
Muitos dos que o criticam pela sua atitude, entregando o poder das antigas colónias em África aos movimentos que antes combatíamos, ignoram ou fazem por ignorar a real situação em que o País se encontrava na altura. Um ambiente hostil da comunidade internacional, sobre pressão dos Estados Unidos e da Comunidade Económica Europeia (CEE); um esforço de guerra incapaz de conter a cada vez maior ingerência armamentista da União Soviética e da China no apoio aos movimentos de libertação; um exército desorganizado e dividido politicamente; países limítrofes, como a antiga Rodésia e a África do Sul, a braços com a sobrevivência do detestável “poder branco”; um povo português cansado e adverso ao envio dos seus filhos para uma guerra que não sentia como sua; a memória recente e o desprezo por um regime cujo apoio militar se apeou a si próprio e uma intensa vaga de manifestações populares internas, suscitadas por uma aprendizagem política apressada e manobrada, que condicionavam qualquer Governo. Nestas condições e para furar o isolamento internacional em que Portugal se encontrava, Soares não tinha grande escolha.
Mário Soares não foi certamente, entre aqueles que perseguiam idênticos ideais socialistas, o homem politicamente mais genial para a gigantesca tarefa que se lhe deparava, mas foi o mais astuto, o mais combativo e experiente, perante os seus pares. Tinha, além disso, outra característica que marcou o seu sucesso: conhecia profundamente o sentir do povo e falava a sua linguagem.
Sá Carneiro, em consequência da sua precoce acção política após o 25 de Abril e da sua morte prematura, tornou-se apenas num símbolo mítico do jovem Partido Social-Democrata (PPD). Álvaro Cunhal mantinha o seu partido (PCP) religiosamente ligado aos interesses da União Soviética, desestabilizando a Europa a favor das conveniências de Moscovo e perseguindo os objectivos de tomada do poder pela força. Mário Soares, perseverante e laborioso e porque a chamada “terceira via” da altura (Melo Antunes) não passava de uma mal elaborada construção teórica, soube lutar pela única alternativa válida para o País, a qual granjeava os apoios essenciais na Europa.
Soares não foi sempre consensual, nem tinha que ser, nomeadamente em relação àqueles que se opunham à liberdade e à democracia. Bateu-se pelas suas convicções e soube respeitar os seus opositores. Interveio na vida política portuguesa com voz firme e determinada, apelando ao povo, nas situações nacionais mais difíceis (antes e depois de 74) para que não desistisse de construir um Portugal melhor, livre e democrático.
Soares faleceu com 92 anos, após um percurso de vida política recheado de vitórias e derrotas, em que estas últimas apenas lhe alimentavam o desejo de lutar por novas vitórias.
Foi um resistente que a história não esquecerá, em nome da liberdade que prezamos!
LUIS BARREIRA