As primeiras heresias
O Cristianismo havia nascido muito pouco tempo antes. Estávamos no século III. Tribulações, perigos, perseguições, intolerância, martírios, ciclicamente eram realidades dolorosas. Todavia, o novo sentimento religioso difundia-se. Crescia. E com ele interpretações e opiniões. Polémicas até. O sangue dos mártires, diz-se, foi o fermento da fé. Mas não apenas. As cisões, querelas, cismas e heresias deram-lhe sentido, força e definição, esclarecimento. Ou tentativas nesse sentido.
Já aqui falámos das primeiras heresias. No caso, do aparecimento dos Gnósticos. Dualistas, com interpretações muito próprias e alegóricas das Sagradas Escrituras, com uma filosofia neoplatónica. Ou teosofias onde cabiam tantas tendências. Muitos seduziram-se e afastaram-se da ortodoxia. Enquanto que outros rebentos heterodoxos surgiam. E cresciam, disseminando-se.
Os rigoristas
No âmbito moral, encontramos os Montanistas, quase ascéticos e muito rigorosos, em exagero até. Pregavam a fuga do mundo, a rejeição da vida em sociedade própria do seu tempo. Ao mesmo tempo, surgiam os seguidores de Novaciano, presbítero romano, com um discurso que inflamou os espíritos mais radicais. Rejeitavam, por exemplo, a possibilidade de perdão aos apóstatas: estes mais não eram aqueles que tinham renegado a sua fé cristã, que tinham feito sacrifícios aos deuses e renegado o Deus único.
Assim o fizeram nas perseguições, nomeadamente no séc. III, quando muitos optaram por afirmar a sua fé e conhecido por isso o degredo, a prisão, a infâmia e mesmo o martírio. Com Décio, imperador anti-cristão que perseguiu os seguidores de Jesus em 251, o número de apóstatas cresceu. Depois, com a acalmia e a possibilidade de perdão, este foi negado por muitos sobreviventes e algumas comunidades. Na verdade, a doutrina de Novaciano negava a possibilidade da penitência e do perdão dos pecados. Acreditavam que o baptismo era a única oportunidade, ou possibilidade, concedida por Deus aos pecadores para que fossem perdoados. Estava-se perante mais um dos intentos – ou tentações… – de transformar a Igreja num reduto de puros e crentes sem contaminação, de seres perfeitos. A intolerância dos cristãos era, assim, uma realidade, também, mesmo sendo vítimas da intolerância…
Como sempre, a Igreja reagiu. Por vezes com forte determinação, intelectual e teológica; outras vezes, de forma mais violenta. Neste século III, perante Montanistas e Novacianistas, a Igreja encetou uma contra-ofensiva. Teólogos do calibre de Justino, Ireneu, Tertuliano ou Hipólito, entre vários autores eclesiásticos, rebateram aquelas heresias com argumentos estribados na tradição apostólica.
A Igreja trabalhou então de forma minuciosa e cuidadosa, cada aspecto e cada ponto doutrinal, de forma a blindar o aparato teológico em definição constante. Clarificaram, em primeiro lugar, a formulação do credo baptismal; depois começaram a estabelecer o cânone fixo das Escrituras; reconheceram a correlação entre os dois Testamentos, venerando-os de igual modo e com o mesmo impacto teológico. A estratégia, conseguida, era a de confrontar as heresias e seus sequazes, o seu relativismo, ou mesmo subjectivismo, com a solidez de uma doutrina, coesa e bem alicerçada, reconhecida na Revelação por Jesus aos Apóstolos e por estes (a Tradição) transmitida às comunidades cristãs.
A definição eclesial
A proposta de base desta reacção – que no fundo era mais um passo na afirmação e definição da estrutura eclesial (no plano doutrinal) da Igreja – assentava na tradição e na sucessão apostólicas. Era um esforço que vinha de trás. Já antes, em 180, nas controvérsias com os Gnósticos, um dos argumentos de Ireneu de Lião foi precisamente essa tradição e sucessão apostólicas, que demonstravam a fidelidade da Igreja às origens evangélicas, apresentando listas de bispos das principais “igrejas” (comunidades) que tinham a sua origem nos próprios Apóstolos e que se sucediam sem interrupções.
Esta luta contra as heresias dos alvores do Cristianismo podemos afirmar que foi vencida pela Igreja. Porque actuou com coesão e com alicerces, vínculos e coerência doutrinais. Podemos aferi-lo no facto das comunidades e seus bispos terem rejeitado as heresias com determinação e vigor. Com destaque para a comunidade de Roma, que ganhou aí também a sua importância eclesial, a sua preponderância e destaque. Desde muito cedo, Roma converteu-se num ponto de referência e de confirmação teológica e doutrinal nas controvérsias que surgiam e que se transformavam muitas em heresias.
Foi o já citado Ireneu de Lião quem atribuiu a Roma uma proeminência especial nesse plano, explicando mesmo que qualquer comunidade que deseje manter e perseverar a tradição apostólica terá que estar sempre de acordo com ela. Com Roma, caput mundi (“cabeça do mundo”).
Os cismas, as heresias, os confrontos de doutrina e de costumes, ou até de comportamentos e “psicologias” diferentes, eram uma constante na vida eclesial do Cristianismo em expansão. Surgem mesmo de forma espontânea, natural, dada a disseminação da Boa Nova em lugares, latitudes, povos e sensibilidades, contextos tão diferentes. Temos como que um corpo da Igreja coeso e forte, estruturalmente organizado e coerente; depois, como rémoras ou parasitas, ou sugando, seitas, grupos, tendências, facções e “igrejas” diferentes, em vias de dissidências, por afirmarem cada vez mais características distintas.
Esta diversidade, todavia, não chegou a transformar a Igreja num caos, num manto esfarrapado de tendências e tonalidades teológicas díspares. Naqueles tempos, as comunidades eram comunidade, pois mantinham vivo e activo o sentimento de pertença e vínculo ao que acreditavam ser a única Igreja de Cristo. Hierarquia (bispos), importância da mesma, como dos textos sagrados de ambos os Testamentos, da Tradição, foram alguns dos vectores de configuração da Igreja e da sua blindagem face a cismas, heresias, divisões, seitas. A celebração da memória dos Apóstolos e dos primeiros mártires assumiu-se também, nas primeiras comunidades cristãs, como um elemento de coesão importante. Mas não deixaram, como se verá, de surgirem novas cisões, interpretações, desvios da ortodoxia…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa