O trabalho de sapa de Emil Forchhammer
Continuemos com Emil Forchhammer imaginando agora uma viagem no tempo para podermos acompanhar os seus passos nos sombrios corredores do Shitthaung forrado a paredes de pedra e com um pátio intramuros com capacidade para “albergar uma inteira guarnição”, reforçando assim o conceito arquitectónico do mosteiro-fortaleza. Nada fácil, semelhante tarefa de sapa, levada a cabo na década de 1880. Os orifícios por onde entrava o ar e a luz estavam atulhados com o lixo acumulado ao longo dos séculos. Nesse húmido habitat de lacraus, serpentes e centopeias, esquecido local dos deuses, a luz dos archotes empunhados pelos membros da equipa do etnolinguista acabaria por perturbar o sono dos mais ilustres moradores: as colónias de morcegos. Viram-se obrigados, Emil e companhia, a abrir os para-sóis que levavam para o efeito, sustendo desse modo sucessivas vagas de assustados mamíferos alados.
O investigador suíço constata o bom estado interior do Shitthaung, explicável pela qualidade dos materiais usados na construção. Chega inclusive a estabelecer um paralelo entre os pagodes birmaneses, de tijolo, e os de Arracão, maioritariamente de pedra. Nestes, os desenhos ornamentais foram feitos na pedra não rebocada, enquanto nos primeiros aplicou-se o cunho no revestimento do tijolo ainda macio. Quanto à durabilidade, a técnica arquitectural dos templos de Mrauk U supera, e de longe, a dos congéneres erguidos nas margens do Irrawaddy, dos quais Bagan é exemplo paradigmático. “Os templos de tijolo” – escreve Emil – “passadas umas cinquenta monções, se não forem restaurados, ficam uma ruína completa”… Além do mais, nesse caso, “o estuque tem de ser renovado a cada dois ou três anos”. Já os pagodes de pedra de Mrauk U, “construídos há três e quatro séculos”, apesar de totalmente negligenciados nos últimos 150 anos, mantinham-se firmes e sólidos, pois os blocos de pedra “encaixam perfeitamente e são unidos com cimento”, resistindo assim à absorção de humidade e à força das raízes das figueiras-da-Índia, capazes de reduzir um pagode a um monte de escombros em pouco tempo. “Nada”, conclui Emil, “excepto um terrível terramoto ou um bombardeio contínuo, pode perturbar esta massa compacta de pedras cimentadas e bem ajustadas”.
Forchhammer fala com conhecimento de causa. Shitthaung fora posta à prova pelos bombardeamentos birmaneses de 1784 e, mais recentemente, pelos obuses britânicos de 1825, cujo resultado era ainda visível na parte oeste, “uma pilha informe de tijolos e pedras”. E escusado era realçar o valor de um património daqueles já que dele não faziam qualquer uso os nativos, nem sequer os seduzia o misterioso labirinto. “Um espanto supersticioso os impele a nem sequer se aproximar dele”, comentava Emil Forchhammer, extasiado pela “habilidade e a arte” patente na construção e na ornamentação, “muito além do que os próprios arracaneses tinham alcançado, pois toda a estrutura é estranha, nas suas principais características, ao estilo arquitectónico nativo”.
Por mais que me esforce não encontro (a não ser na estatuária) significativos elementos ornamentais hindus no interior de Shitthaung, por isso não sei onde se baseia Forchhammer para chegar à conclusão que chegou. Se é certo que o trabalho artístico se deve a artífices hindus, a concepção não deixa dúvidas quanto à origem. O mesmo se aplica a Htukkanthein (Dukkhanthein), designado “santuário da miséria”, devido à ausência de desenhos decorativos, compensada pelos meios empregados para o tornar indestrutível. “Não conheço nenhuma estrutura do género, é única no seu estilo”, confessa Emil, “como são únicos Shitthaung e Andaw. Nem mesmo em Bagan deparamos com estruturas desta natureza”. Pois não, a distintiva característica de que nos fala Emil Forchhammer deve-se ao contributo português. E não é preciso ser especialista de coisa alguma para o constatar. O parecer de Forchhammer foi publicado em 1891, um ano após a sua morte, e republicado em 1892 sob o título “Relatório sobre as antiguidades de Arracão”. Além dos templos já mencionados e ainda o vizinho Lemeyknha, “pagode de quatro faces”, mandado construir por Min Bin, são analisados muitos outros pagodes, de importância secundária, e escalpelizados o Palácio Real e o templo de Mahamuni, ao qual Emil dedica toda a primeira parte do relatório, que inclui desenhos, plantas e fotografias. Conclui o suíço que fora do perímetro de Mrauk U não há ruínas de significativa relevância no resto do Arracão.
A respeito da relíquia guardada no pagode de Andaw – e a título de curiosidade – esclarece Emil não se tratar do dente do Gautama mas de um incisivo de um boi, uma reencarnação sua já com muitos séculos; de resto, como não contém o crânio do Iluminado o pagode de Urittaung tão-só a caixa craniana de um bodhisattva (embrião de Buda) que numa de suas existências anteriores era um brâmane rico local. “O mesmo se aplica a outras relíquias na Índia e na Birmânia”, recorda Emil. Esquecendo a natureza original dos remanescentes sagrados e as tradições relacionadas a eles, declararam que eram relíquias do corpo de Buda, quando na verdade se trata das suas múltiplas encarnações.
Joaquim Magalhães de Castro