TEREZA SENA

TEREZA SENA, INVESTIGADORA DO INSTITUTO POLITÉCNICO DE MACAU

Sente-se a necessidade de construir uma identidade de Macau

Filósofo, pedagogo e polemista. É assim que Tereza Sena se refere a Júlio Augusto Massa, co-fundador do jornal O CLARIMe antigo provedor da Santa Casa da Misericórdia, esta semana homenageado pelo Instituto Internacional de Macau, com o lançamento de um novo volume da colecção “Missionários para o século XXI”. A investigadora do Instituto Politécnico de Macau aplaude a iniciativa do IIM de resgatar a memória de algumas das figuras mais influentes do século XX no território. Tereza Sena em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM– Temos no padre Júlio Augusto Massa um bom exemplo daquilo que foi uma certa elite intelectual criada em Macau pela mão da Igreja.

TEREZA SENA– É formada no exterior…

CL– …mas com o incentivo da diocese de Macau. Em que é que Augusto Massa se distinguia dos outros jovens missionários que se fizeram sacerdotes no Seminário de São José?

T.S.– Eu talvez não colocasse a questão nesses termos. O que há aqui é, realmente, uma política da Diocese em ir formando missionários de elite, muito bem formados, na esperança de que eles voltassem e dessem retorno a Macau, sobretudo em termos pedagógicos, ao nível do Seminário e, também, através da intervenção na imprensa, como foi o caso. Eles iam-se um pouco sucedendo, de acordo com as faixas etárias. Uns estavam no auge, mas começava-se a preparar outro para o suceder e era isto, em grande medida, que sucedia nos cargos mais importantes. Ele aqui teve uma acção mais visível na assistência social, mas também na Misericórdia, aqui também com um cariz político. Em termos de pensamento, Júlio Augusto Massa era um homem que era, fundamentalmente, um filósofo, um muito bom pedagogo e um polemista, também. Era um bom jornalista. Teve bastante impacto na sociedade na altura, ainda que tenha ficado pouco em termos de testemunho escrito. Tudo o que ele colocou em obra foi já depois de estar debilitado fisicamente, mas foi uma forma de recuperar o tempo perdido. Estes missionários, cada um no seu domínio, deram o seu contributo a Macau. O padre Massa uniu-se àquele grupo de jovens que funda O CLARIMe que são jovens da Juventude Católica, que querem mudar o mundo. O CLARIMtem o seu início nos anos quarenta, mas este grupo está bastante activo nos anos sessenta, quando o paradigma é já o de um mundo em transformação.

CL– Em relação a’O CLARIM, o padre Massa assume o estatuto de director por uns meses apenas. Por que não assumiu um maior protagonismo no jornal que ajudou a fundar?

T.S.– Ele não fundou o jornal. Não é ele que funda o jornal. Quem funda o jornal é um grupo da Juventude Católica. É todo um grupo de jovens que querem mudar o mundo que herdaram. O director é o padre Fernando Maciel, que era mais velho. Já tinha sido também formado no exterior. É este sacerdote que ocupa, digamos, o lugar mais prestigiado a nível intelectual no âmbito da Diocese. O padre Júlio Massa é um novato. Tinha acabado de se formar nessa altura, ainda nem sequer tinha ido estudar para o exterior. O padre Maciel vai de licença graciosa a Portugal e ele substitui-o. É director substituto naquele período para assegurar o projecto, mas é sobretudo um dos jovens – porque ele é tão jovem como o Silveira Machado e o Gastão de Barros – que querem mudar, que querem trazer novas ideias e que querem falar de outras coisas.

CL– Deixa um legado na Santa Casa da Misericórdia, mas também junto da Câmara Corporativa. Apesar dessa faceta crítica, era uma pessoa do seu tempo, ao serviço das circunstâncias políticas da época?

T.S.– Eu penso que sim. Mas, como lhe dizia, não estudei a vida do padre Augusto Massa em profundidade. Isto são dados que fui compilando para arquitectar um bocadinho a intervenção quando me foi colocada a hipótese de trabalhar sobre ele. Teve, como foi sublinhado, uma grande ligação ao governador Jaime Silvério Marques e é o próprio governador que o convoca para servir na Provedoria da Misericórdia. É uma escolha. Não tenho dados a esse respeito, mas penso que terá sido indigitado exactamente para a Câmara Corporativa como representante ultramarino das Misericórdias, possivelmente mediante um parecer do governador, até porque a indigitação nas províncias era feita por via governamental. É possível que haja aí uma certa ligação. Era um homem ligado ao seu tempo, um homem interveniente, ainda novo, activo, com ideias arejadas. É possível que tenha sido por aí. O edifício Rainha D. Leonor foi mandado construir na altura em que o padre Massa era provedor da Misericórdia. Aquele Externato situado na zona do Chunambeiro também. Toda a obra modernista da Misericórdia passa um pouco por ele e é por isso que eu acho que era importante estudar o seu contributo na Misericórdia e as inovações que trouxe.

CL– Este esforço que o Instituto Internacional de Macau está a fazer para reabilitar a memória destas figuras, que são de certa forma mais centradas na Igreja, é um trabalho que se impõe?

T.S.– Há uma série de colecções que surgiram no contexto da transição. Algumas começaram um pouco antes e é um projecto que várias instituições chamaram a si. Foi por isso que eu quis dar aquela perspectiva comparada no início e que foi uma necessidade sentida por vários sectores da comunidade de Macau e por várias instituições, sendo que cada uma chamou a si a obrigação de perpetuar a memória e de abrir as portas a estudos mais profundos que se possam vir a fazer no futuro. Aqui temos a colecção dos missionários, cujo projecto foi lançado antes de 1999; temos o Albergue, com as fotobiografias dos Macaenses Ilustres e o próprio Instituto Politécnico está também a fazer este levantamento em relação às profissões tradicionais de Macau, aos testemunhos de guerra, aos historiadores e aos cientistas sociais, aos professores. Toda a gente sente um pouco a necessidade de construção de uma identidade de Macau. E não é só do lado português.

CL– No seu caso, o que tem em mãos neste momento? O que podemos esperar nos próximos meses?

T.S.– Podem esperar talvez para o ano – uma vez que está entregue e acabado – um livro de dez ensaios biográficos sobre autores e figuras marcantes, ligadas às letras dos séculos XIX e XX de Macau, escritos essencialmente para serem divulgados junto do público chinês. São textos sintéticos. A versão portuguesa vai ser um bocadinho mais desenvolvida, mas os textos foram redigidos para um público chinês.

CL– Refere-se a autores portugueses e macaenses, então?

T.S.– Portugueses e macaenses. São os mais badalados. Aqui não pude fugir à regra. São os mais representativas, mas a abordagem não se fica pelas obras. As obras complementam. É um pouco vivências, exemplos de pessoas que passaram por Macau e contribuíram para o território e que têm algumas marcas na cidade: referências na toponímia, bustos ou qualquer coisa desse tipo. Este tipo de referências muitas vezes não dizem nada à população chinesa. Este trabalho está pronto e acabado, deverá sair primeiro em Chinês na imprensa, depois em volume e, depois, uma versão em língua portuguesa, editada pelo Politécnico.

Marco Carvalho

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