«A esperança ampara-nos na nossa caminhada de fé»
Professor-visitante da Universidade de São José desde 2019, o padre David Goodill, OP, está pela primeira vez em Macau e vai proferir, hoje, ao início da noite na igreja de São Domingos, uma palestra sobre o conceito de “esperança” na Suma Teológica (Summa Theologiae) de São Tomás de Aquino. Doutorado em Teologia moral pela Universidade de Friburgo, na Suíça, o sacerdote dominicano argumenta que a esperança é a virtude que nos faz perseverar na nossa jornada de fé. O padre Goodill, em entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – São Tomás de Aquino concebe a ideia de esperança como uma forma de obter a redenção, se não mesmo a salvação. O que há de especial no modo como São Tomás de Aquino perspectiva a esperança?
PADRE DAVID GOODILL – São Tomás de Aquino olha para a esperança em duas passagens na sua Summa Theologiae. Na primeira, aborda-a numa perspectiva emocional: a emoção da esperança, a paixão da esperança. É um entendimento que é próximo daquilo que é a nossa percepção quotidiana da esperança. É como se ansiássemos pelo futuro, como se quiséssemos obter algo no futuro, mas tivéssemos um obstáculo pelo meio. É o tipo de emoções que os animais também possuem, à sua maneira. De certo modo, é assim que os seus desejos funcionam. É o tipo de emoção que partilhamos com os animais. Veja-se os cães ou os gatos: de certo modo, esperam ou alimentam a expectativa de que alguém lhes dê comida. É essa mesma emoção básica que nos impele a agir para ultrapassar aquilo que nos separa de um bem futuro. Uma criança, por exemplo, quer sair de casa e quer ir brincar com os seus amigos, mas há um qualquer impedimento. Vamos supor que há um cão no meio do caminho e que ele tem de passar pelo cão para chegar junto dos seus amigos. A esperança que ele tem é que, de uma ou de outra forma, possa arranjar uma forma de solucionar este dilema e superar os obstáculos. O bem futuro que o aguarda é a possibilidade de brincar com os amigos. A perspectiva pela qual São Tomás começa é a esperança como uma emoção humana básica. É o tipo de emoção que São Tomás considera muito forte nos mais jovens, até porque os jovens têm muito tempo pela frente e não têm uma experiência passada muito vincada. De um modo geral, os mais jovens têm esse sentido de esperança em relação ao futuro. Mas é algo que ele também associa a quem está embriagado. As pessoas que beberam em demasia ganham, subitamente, a sensação de que podem alcançar o que quer que seja e superar qualquer obstáculo. É uma emoção que pode ser também um tanto ou quanto idiota. A emoção, por si só, pode ser útil, mas ao mesmo tempo pode ser um tanto ou quanto imatura, algo que possuímos quando não somos inteiramente racionais. No entanto, como emoção básica, é algo bom.
CL – Contudo, São Tomás de Aquino vai para além da emoção…
P.D.G. – O que São Tomás faz depois, no que à sua apresentação da Teologia da esperança diz respeito, é olhar para as Escrituras, particularmente para as epístolas de São Paulo; e o que ele identifica é “espera” e “expectativa” em relação à vinda do Reino de Deus. A ideia de que Deus nos prometeu a salvação, de que nos prometeu a vinda do seu Reino e que somos aptos a entrar no Reino de Deus através da dádiva e da virtude da fé, é uma promessa que nós sabemos que é verdadeira, porque foi Deus quem a fez. O que a esperança faz: a esperança ampara-nos na nossa caminhada de fé, à medida que vamos caminhando ao encontro do Reino de Deus. Da mesma forma que uma criança tem de superar obstáculos para alcançar as coisas boas que quer obter no futuro, na nossa caminhada de fé sabemos que Deus nos prometeu o seu Reino, mas há muitos obstáculos no caminho para que possamos viver uma vida completamente cristã. Há muitas tentações a que temos de abdicar. Uma dessas tentações é presumir que já alcançámos o que há para alcançar e que não precisamos que Deus actue no nosso âmago e nos encha com a sua graça. Aquilo de que necessitamos é uma virtude especial, que São Tomás vai buscar às Escrituras e à tradição teológica, de forma a que possamos avançar rumo a esse bem futuro que é Deus. E para São Tomás há dois elementos neste processo: há o bem propriamente dito que Deus nos prometeu. E depois há esta ajuda que Deus nos envia. Através da fé sabemos que Deus nos vai enviar a Sua ajuda, quando ela se fizer mais necessária. Parte da virtude da esperança é esta noção de que Deus nos vai facultar ajuda, graças ou dádivas espirituais quando mais necessitarmos delas.
CL – De que forma é que a esperança, entendida a partir dessa perspectiva, nos pode ajudar a corrigir as nossas faltas e a aliviar o fardo que carregamos?
P.D.G. – Essa é uma boa pergunta. O que São Tomás faz é olhar para essa caminhada de e na esperança como um desenvolvimento da relação que mantemos com Deus. É exactamente por isso que ele associa à virtude da esperança a dádiva teológica do medo. O medo pode ser visto de formas muito diferentes, mas ele escreve, estritamente, sobre o medo de Deus como algo positivo, como algo bom. São Tomás de Aquino considera que no início da nossa jornada na graça de Deus, da nossa jornada de fé, ainda comungamos dessa sensação de temor a Deus. Por que devemos fazer aquilo que é correcto? Por que devemos viver de acordo com os ensinamentos de Deus e com os Mandamentos? Por que devemos eleger uma vida pautada pelo bem? Por que tememos o castigo de Deus? É esse o ponto em que começa a nossa caminhada de fé. Mas, assim que a nossa fé começa a amadurecer, o nosso receio de Deus transforma-se no tipo de respeito que ganhamos pelos nossos pais à medida que eles envelhecem. (…) Não é exactamente o receio de sermos castigados que nos move. É, sobretudo, o amor e o respeito por Deus que torna essa relação cada vez mais cativante.
CL – De que forma podem os católicos, no seu dia-a-dia, cultivar essa virtude, essa dádiva da esperança?
P.D.G. – De certo modo, podem viver a fé de forma activa, mas a melhor forma de fomentar a esperança é através da oração. A oração – e, em particular, a oração intercessória – significa que nos colocamos nas mãos de Deus e que pedimos a Deus que nos ajude. Ao fazermos isso, o nosso amor, a nossa relação com Deus cresce e essa virtude da esperança cresce connosco, até porque a nossa vida se torna mais dependente do amor, da graça e da ajuda de Deus.
Marco Carvalho