PADRE GIANNI CRIVELLER

PADRE GIANNI CRIVELLER, REPRESENTANTE DO PONTIFÍCIO INSTITUTO DAS MISSÕES EXTERIORES EM MILÃO

«A Igreja universal necessita de um Concílio Vaticano III»

Foi um dos principais oradores do simpósio de três dias com que a Universidade de São José assinalou, no final da passada semana, os cem anos do primeiro – e até agora único – Concílio da Igreja Católica na China. Missionário do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME), o padre Gianni Criveller viveu na China Continental entre 1991 e 2017, e conhece como poucos a realidade e os desafios que os católicos chineses enfrentam. Um dos maiores é a fragilidade em que estão mergulhadas as novas gerações. Actual director do Centro Missionário PIME de Milão, o padre Gianni Criveller é o entrevistado desta edição.

O CLARIM – Para a Igreja Católica na China, houve um antes e um depois do Concílio realizado em Xangai há cem anos. O quão relevante foi este Concilium Sinense e de que forma mudou o Catolicismo na China?

PADRE GIANNI CRIVELLER – Bem, há um século foi algo muito relevante, porque foi feito um apelo à inculturação e à indigenização da Igreja Católica na China. Inculturação significa expressar a fé católica de uma forma que possa estar harmonizada com a identidade nacional do povo chinês. Indigenização significa deixar que o clero chinês fosse responsável dentro da Igreja. Por outras palavras, dispor de bispos chineses e não de bispos estrangeiros. Naquela altura, não havia um único bispo chinês em toda a China. Por isso, a esse nível, foi um evento bem-sucedido. Foi necessário algum tempo, mas dois anos mais tarde, seis bispos chineses foram consagrados e esse número tem vindo a crescer desde então. Hoje em dia, temos cerca de uma centena de bispos na China e todos eles são chineses. De um mesmo modo, também a inculturação foi ganhando terreno. A Universidade Fu Jen foi fundada e outras Universidades foram fundadas. A Universidade Fu Jen, que ainda existe em Taipé, foi inicialmente fundada em Pequim e o arcebispo Constantini, o delegado apostólico, criou uma escola de artes visuais em estilo chinês, para que as figuras sagradas – Jesus, a Virgem Maria e São José – pudessem ser retratadas com feições mais chinesas. Os missionários começaram a implementar aquilo que tinha sido pedido pelo Papa Bento XV, na Encíclica Maximum Illud, publicada em 1919, com o objectivo de tornar a Igreja na China mais chinesa e menos sujeita a interesses estrangeiros. Eu creio que esse objectivo foi alcançado.

CL – Como é que este Concílio foi acolhido pelas congregações e pelos missionários que já estavam presentes na China?

P.G.C. – Foi uma empreitada difícil. O próprio arcebispo Constantini reconheceu isso. É necessário que se diga que nem todos os missionários estrangeiros eram nacionalistas e nem todos eles mostraram oposição à inculturação e à indigenização da Igreja na China. Muitos desses missionários estavam a favor. O que eles diziam é que já estava mais do que na hora. Por exemplo, os missionários italianos, pelo menos aqueles com que estou familiarizado, até porque li a correspondência deles, acolheram muito bem a iniciativa, a exemplo do que sucedeu com os belgas. No entanto, havia outros missionários que continuavam a argumentar que o clero chinês não estava preparado e que ainda era necessário algum tempo para o preparar. Esta justificação não tinha qualquer mérito. É claro que os católicos chineses estavam preparados. Já estavam preparados há muito tempo.

CL – Este Concílio ter-se-ia realizado sem o dinamismo e o carisma do arcebispo Celso Constantini?

P.G.C. – Talvez. Mais tarde ou mais cedo algo teria que acontecer. No entanto, sem um homem com este tipo de determinação e com estas capacidades políticas e espirituais, sem esta capacidade para enfrentar críticas e oposição dentro da Igreja, é provável que outras pessoas desistissem. Por isso, penso que por uma ocasião, o Vaticano escolheu o homem certo para a China. No passado, nem sempre a pessoa escolhida foi a pessoa certa. Contudo, devo dizer que a própria determinação do Papa foi muito importante. O Papa já tinha deixado claro que queria que as coisas mudassem na China. Tanto o Papa Bento XV, como depois o Papa Pio IX. Celso Constantini era o homem certo no lugar certo, mas ele sempre mostrou grande segurança e grande confiança sobre a sua missão porque contou sempre com total apoio do Vaticano e do Papa.

CL – Argumentou durante a sua intervenção no Simpósio que um Segundo Concílio para a China talvez seja necessário…

P.G.C. – Essas palavras foram, obviamente, pouco mais do que um desejo auspicioso. Não é que um Concílio para China possa ser organizado no próximo ano. Também acredito que a Igreja universal necessita de um Concílio Vaticano III. É, de certa forma, pouco mais do que sonhar acordado. Também há cem anos a ideia de promover um Concílio foi recebida por muitos como algo estranho, impossível e desnecessário. Em suma, uma perda de tempo. De forma a fazer com que as coisas aconteçam é necessário, antes de mais, reflectir e sonhar. Este é o primeiro ponto.

CL – No seu entender, quais são os grandes desafios que a Igreja Católica enfrenta na China?

P.G.C. – Creio que um dos maiores problemas continua a ser a questão da inculturação, no sentido em que não vejo uma relação muito definida entre a fé católica do povo chinês e as diferentes culturas dos católicos chineses. Não há uma cultura chinesa homogénia, há várias culturas dentro da China. Estamos agora num período de cultura pós-moderna e pós-humana, que também influencia o povo chinês. A forma de expressar a nossa própria fé, a nossa própria liturgia, e tudo o mais, tem que estar em harmonia com a nossa identidade cultural. Este é um dos aspectos. Outro desafio são os problemas que os jovens enfrentam. Vim agora da China e os jovens – adolescentes e jovens com dezoito, dezanove, vinte, 21 anos de idade – são muito frágeis, a exemplo do que acontece noutras partes do mundo. Não me parece que tenham uma vida fácil. Também se sentem deprimidos, isolados, sós, revoltados e insatisfeitos. Algo que reparei é que há muitos jovens a cometer suicídio. Por isso, acho que a Igreja, em conjunto com outras instituições, com instituições de Educação, pode contribuir para dar a volta a este cenário. Parece-me ser uma consequência do mundo pós-Covid. Talvez a próxima geração seja diferente, mas, por agora, na minha opinião, as consequências são bastante sérias. Outro desafio passa por promover uma maior interacção entre os próprios católicos. Muitos fiéis deixaram as suas aldeias e regiões de origem e mudaram-se para as cidades. Neste processo, muitos perderam a prática efectiva da fé. Foram para a cidade, vivem em bairros enormes, onde muitas vezes não existem igrejas e a prática da fé acaba por desaparecer. Por outro lado, os católicos que vivem nas cidades e que estão, possivelmente, melhor apetrechados para enfrentar os desafios da modernidade, muitas vezes não conseguem criar ligações com os que vêm das zonas rurais. É quase como se estivéssemos a falar de dois tipos de católicos. Outra questão é a formação das pessoas, do povo de Deus, dos que são baptizados. As pessoas que a Igreja denomina como leigos. Eu não gosto do termo. De qualquer forma, somos todos responsáveis na Igreja, mas a Igreja na China ainda consegue ser um pouco clerical. Os bispos e os sacerdotes estão no topo e os outros têm de seguir. Não é assim que as coisas funcionam ou, pelo menos, não devia ser.

Marco Carvalho

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