«O Irão é forte inimigo do terrorismo fundamentalista»
Técnico superior da Biblioteca Nacional de Portugal e Investigador do Instituto do Oriente (ISCPS), com obra publicada e conhecedor da realidade asiática, Miguel Castelo-Branco é hoje uma voz activa nas redes sociais, analisando com clareza, assertividade, erudição e humor os mais diversos assuntos do panorama nacional e internacional – da política à cultura, da economia ao “fait-divers” – pugnando sempre pelas questões patrióticas e o bom nome de Portugal. O Clarim foi ouvi-lo, no ano em que se assinalam cinco séculos de presença portuguesa no Golfo Pérsico.
O CLARIM – Como aconteceu em 2011 e 2014, aquando da comemoração dos 500 anos das relações Portugal-Sião e Portugal-China, também este ano irá coordenar a publicação de um livro, desta feita para assinalar os 500 anos da presença de Portugal no Golfo Pérsico. O que podemos esperar dessa obra?
Miguel Castelo-Branco – Com efeito, as duas iniciativas a que alude foram, que eu saiba, as únicas de que resultou a publicação de obras visando proporcionar a um público vasto uma perspectiva tão abrangente como possível da diversidade de linhas subsumidas, respectivamente, nas relações entre Portugal e a Tailândia, e entre Portugal e a China. Trabalhei com o professor António Vasconcelos de Saldanha no “Das Partes do Sião” e creio termos ali estabelecido uma metodologia e um modelo inovadores que, afinados no “Portugal-China: 500 anos” – editado com a chancela da Biblioteca Nacional de Portugal e da Babel – parece ter resultado em pleno. Para o “Portugal e Ormuz: 500 anos”, assim se chamará a obra com edição prevista para finais deste ano, tenho trabalhado com o professor António Dias Farinha que é, indiscutivelmente, o nosso maior especialista em cultura árabe e civilização islâmica. Quando passam cinco séculos sobre o estabelecimento dos portugueses no Golfo Pérsico, mercê da conquista e vassalização do Reino de Ormuz – permitindo o controlo pela Coroa Portuguesa, por mais de um século, de uma das mais importantes zonas do comércio oriental – preparámos esta obra que oferecerá testemunho das intensas relações, não só de natureza política e diplomática, como igualmente nos domínios científico, tecnológico, artístico e arquitectónico, bem como da construção naval, da missionação, das trocas linguísticas… As relações luso-persas não terminaram em 1622, por ocasião da queda de Ormuz. Portugal manteve-se na Península da Arábia ou continuou a demandar o Golfo Pérsico e, em finais do século XVII, as relações entre portugueses e persas voltaram a conhecer novo fôlego, assim se mantendo até meados do século XVIII. No século XIX, com a lenta adesão da Pérsia à comunidade internacional, voltaram os dois Estados a abrir canais de relacionamento. A assinatura de tratados, o estabelecimento de agentes diplomáticos e a intensificação dos contactos económicos e culturais – jamais interrompidos, até mesmo após a implantação da República Islâmica – reúne excelentes condições para o estudo destas relações. Porém, o trabalho não incluiu apenas as relações luso-iranianas. A obra incluiu as igualmente importantes relações travadas, designadamente entre Portugal e Omã, o Bahrein e os hoje chamados Emirados Árabes Unidos.
CL – Haverá outras iniciativas a ela associadas?
M.C.B. – A doutora Inês Cordeiro, directora-geral da Biblioteca Nacional de Portugal, tem abraçado com entusiasmo este ciclo de comemorações relativas ao Oriente Português, estimulando estas linhas de investigação (de que resultam as obras já referidas) mas também exposições e mostras documentais. Assim, para “Portugal e Ormuz: 500 anos”, prevê-se não apenas a edição da obra com o mesmo título, mas também uma exposição reunindo documentos relevantes existentes na Biblioteca Nacional de Portugal, na Torre do Tombo, na Biblioteca de Évora, entre outras. A Biblioteca Nacional de Portugal, não se substituindo às universidades, tem-se constituído neste particular em importante parceiro visando dar a conhecer a riqueza de testemunhos documentais sobre a presença de Portugal na Ásia.
CL – Pode descrever-nos, sucintamente, o processo de elaboração de um projecto desta natureza. Qual o critério para escolher os colaboradores?
M.C.B. – A estrutura da obra é temático-cronológica, ou seja, a propósito de um tema, pedimos a um especialista que escolha um documento – uma carta geográfica, um documento de arquivo, um impresso, um objecto – e a pretexto desse proporcione ao leitor informação panorâmica, mas precisa sobre um tema: por exemplo, medicina, armaria, arquitectura militar, missões diplomáticas, literatura dita de viagens, crónicas quinhentistas e seiscentistas. O critério de selecção dos colaboradores norteia-se, assim, pelo mérito já demonstrado em trabalhos editados sobre o tema que é atribuído a cada um.
CL – Pode indicar o nome de alguns deles e quais os temas a abordar?
M.C.B. – Contaremos com trabalhos assinados pelo embaixador Marcelo Curto (Relações Contemporâneas entre Portugal e o Irão), pelos professores Rui Loureiro (Embaixada de Don Garcia Silva y Figueroa; Porcelanas Chinesas em Ormuz; o Comércio de Cavalos a partir de Ormuz), João Alves Dias (A Titulação Régia de D. Manuel I), João Campos (A Arte de Edificação Militar Portuguesa no Golfo), Maria Augusta Lima Cruz (A Pérsia em Diogo do Couto), Maria Leonor Garcia da Cruz (A Fazenda Real e o Comércio com a Pérsia), Borges Coelho (A Pérsia em João de Barros), Francisco Contente Domingues (A Navegação no Golfo Pérsico e no Índico), mas igualmente importantes contributos da autoria de Filipe Alves Moreira (A Pérsia nos Textos Medievais Portugueses), Alexandra Curvelo (Ecos da Pérsia na Azulejaria Portuguesa), Pedro Prata (Medicina e Farmacopeia Portuguesas), Maria Dá Mesquita (Relações Luso-Persas no Século XIX), Vítor Rodrigues (Tecnologia Militar Portuguesa) e Rafael Pinto Borges (A Embaixada Persa enviada a Filipe II de Portugal), entre outros. Não quero ser exaustivo no elencar dos temas e colaboradores, mas ficará decerto ciente do amplo espectro temático, bem como da qualidade dos colaboradores. Quanto ao professor Dias Farinha, caber-lhe-á um estudo introdutório, e a mim uma reflexão sobre a importância do Irão no quadro regional onde se insere, bem como uma entrada sobre as missões diplomáticas enviadas durante o reinado de D. Manuel I, via Albuquerque, ao Xá Ismail.
CL – Algum capítulo aborda a relação Pérsia-China, por intermédio de Macau, com portugueses de premeio?
M.C.B. – Infelizmente não, muito embora a matéria oriental portuguesa esteja toda entrelaçada com Goa, com Malaca e Macau, pólos irradiadores da nossa presença na Ásia. Porém, para lá da ilha de Singapura, estabeleceu-se uma demarcação desde meados do século XVI. Para cá de Singapura, isto é, de Malaca, a presença da Coroa era efectiva, interventiva e insistente. Para lá de Singapura, havia como um “Far West” português – com propriedade um “Far East”– espaço de liberdade e iniciativa de chatins, mercenários, piratas e homens de risco. Poderíamos certamente ter incluído ecos de relacionamento luso-persa na Birmânia ou no Sião, pois em Ayutthaya havia um bandel português que mantinha trato com mercadores persas. Porém, na inteligência do trabalho, esses interessantes contactos extravasariam largamente o âmbito geográfico da obra.
CL – Em que estádio se encontra o trabalho? Há já data e local para a sua apresentação pública?
M.C.B. – Estas obras são de confecção demorada, pois exige-se unificação de critérios, revisão, selecção de imagens, legendagem, provas, alterações. Imagine, pois, como será trabalhar com uma vintena de autores, cada qual com a sua ideia de tempo. Contudo, pensamos poder dar por terminada a edição em Outubro ou Novembro, ainda a tempo de cumprir com o propósito, ou seja, a evocação da efeméride do meio milénio da conquista de Ormuz que corre este ano.
CL – Há muito desconhecimento, preconceito e até animosidade em relação ao Irão. Confundem os seus habitantes com os árabes, pressupõe-se que toda a gente é muçulmana, o País é olhado como uma ameaça… A que se deve tudo isto? A quem interessa este espalhar do medo e da má fama?
M.C.B. – Pois, numa palavra, ignorância; ignorância de quem se deixa manipular; ignorância ou má-fé de quem manipula. Um desconhecimento raiando a idiotice e que se exprime na diabolização do Irão – afinal o mais pacífico dos Estados da região, um povo com cinco mil anos de história e grande potência desde a Antiguidade – e que é, aceitemos de barato, um país civilizado e sobre o qual nunca pairou a mínima suspeição de terrorismo, exportação da violência ou anti-ocidentalismo primário. Os iranianos são xiitas, talvez o ramo do Islão que mais similitudes oferece com o Cristianismo em geral, e com o Catolicismo em particular. Não nos esqueçamos, também, que o Irão é uma sociedade multiétnica e multirreligiosa e que ali são protegidos, até com regime de segregação positiva, cristãos e judeus. Além disso, não nos esqueçamos que, por mais estranhas que nos possam parecer algumas instituições legais e traços culturais, o Irão é um Estado de Direito e, até, uma democracia (que eu diria imperfeita), mas que é a única na região. Não esqueçamos que naquele país, metade dos quadros superiores dirigentes do Estado, um terço do Parlamento e até vice-presidências são confiados a mulheres; ou seja, precisamente o contrário de alguns lugares-comuns associados a países ditos fundamentalistas.
CL – Qual a importância, no Médio Oriente, em particular, e no mundo, em geral, de um país como o Irão?
M.C.B. – O Ocidente só agora parece ter acordado para o lugar e o papel a ocupar pelo Irão na estabilização do Médio Oriente. Não há paz sem o Irão, como qualquer resolução pacífica dos problemas que assolam aquela região axial entre o Ocidente e o Oriente passará pela auscultação e o favor do Irão. Após décadas de polémica a respeito de um mirífico plano iraniano para a fabricação da bomba atómica, revela-se agora que, afinal, o Irão jamais se envolveu na corrida a esse tipo de armamento. O Irão é um forte inimigo do terrorismo fundamentalista sunita – isto é, da Al Qaeda e do chamado Estado Islâmico – como tem por todos os meios tentado contrariar o wahhabismo exportado por emirados do Golfo que são apoiados pelo Ocidente. Julgo, sinceramente, que Israel, o Egipto e o Irão tenderão a encontrar uma plataforma razoável de entendimento, se cada qual aceitar cedências em tudo quanto concorra para a paz, a boa vizinhança, a resolução do problema palestiniano e a erradicação do terrorismo.
CL – Quais os paralelos entre a Pérsia de ontem e o Irão de hoje?
M.C.B. – Creio que era Ortega quem alertava para a impossibilidade de entender um povo sem aceitar primeiro que todas as comunidades humanas carregam consigo «certa quantidade de pretérito acumulado». No caso iraniano, essa camada de descoberta e experiência tem uma espessura de vinte e cinco séculos. A Pérsia possui a rara – embora, é sabido, não única – distinção de ser uma grande potência económica, militar e cultural desde a sua fundação enquanto Estado. Como pólo de cultura e emissor de conhecimento, mas igualmente como importante centro de poder, o Irão entende-se como coração da região que integra. Ninguém pode, pois, manifestar-se surpreso quando Teerão recusa o papel de subalternidade que as principais potências desejam impor-lhe. Não se pede a um país tão grande, tão poderoso e tão relevante – o seu universo cultural, é importante relembrá-lo, toca a Turquia a Ocidente e a Índia a Oriente; o Shahnameh de Ferdusi, o poema nacional persa, é lido e estimado da Geórgia ao Tajiquistão – que se demita do papel que os séculos lhe confiaram. O Irão é, ainda, pela sua tradição histórica e política – e apesar da grande diversidade de povos que o habitam – o país mais estável da região. Esse dado explica-se facilmente, bastando para entender a força do Estado persa que aquele é um país com instituições fortes e bem definidas desde o séc. V a.C. e um credo unificador – o Xiismo Duodecimano – desde o séc. XVI. A ignorância ocidental a respeito do Irão, líder natural do Médio Oriente, possibilitou a opção por políticas funestas para ambas as partes. Nos anos 80, o Pentágono apostou no Iraque para a destruição do Irão; ora, o Irão sobreviveu e o Iraque fez-se campo de batalha de toda a sorte de sectarismos e particularismos. A Pérsia sofreu amargamente a guerra dos políticos europeus e americanos à realidade mais indisfarçável. Ambas as partes perderam com isso.
CL – Tem algum outro tipo de projecto de índole editorial em curso que queira mencionar?
M.C.B. – Bom, o meu maior projecto investigativo, “As Relações Luso-Siamesas no Período Rattanakosin (1782-1939)”, obra com mais de seiscentas páginas e me obrigou a passar três anos em Banguecoque investigando e até requerendo a aprendizagem da língua, continua por publicar. Por razões várias, não a poderei publicar, pois ainda aguardo defesa da tese de doutoramento. Espero resolver esse escolho ao longo do ano que corre e poder, assim, contribuir para a revelação da profundidade do sulco deixado por Portugal naquele país do Sudeste-Asiático. Tenho também em projecto um trabalho sobre Zanzibar, que penso poder redigir no decurso do próximo ano. Contudo, como é minha norma, uma coisa de cada vez. A vida é muito curta. Tomara eu viver 100 anos.
Joaquim Magalhães de Castro