As tentações da História
Quando tenho que rever as passagens dos Evangelhos sobre as tentações de Jesus no deserto, preludiando o início da sua vida pública, não deixo nunca de me deter na última, em que o Maligno leva Cristo ao cimo do templo, em Jerusalém, e lhe mostra todos os reinos da terra, prometendo dá-los ao filho de Deus se Ele o adorasse.
Não sei se para um cristão haverá melhor introdução às tentações do poder, do que este trecho bíblico, que aliás aponta para o equívoco fundamental entre o poder de Deus e o poder dos homens.
«O meu reino não é deste mundo…», lembra mais uma vez Jesus no decurso do pseudo-julgamento a que foi submetido, antes de ser flagelado e finalmente crucificado. E a partir dessa dicotomia entre o reino de Deus e o reino dos homens, ficamos nós, cristãos, com a dupla incumbência de preferir o primeiro, mas de ter de construir o segundo, em bases justas, como condição de todos – TODOS – chegarmos ao destino final.
As muitas tentações do deserto
O triste espectáculo do mundo actual é o da multiplicação “ad infinitum” das muitas tentações do deserto, não já tendo Cristo como protagonista, mas cada líder político ou candidato a líder. A quase todos a História oferece reinos a construir, na forma, muitas vezes, de miragens de cidades ideais, onde exercerem poder e majestade, para sua honra e glória, exclusivas ou quase.
Não confundo estas situações de fascínio enganador de tantos com o trabalho consequente, em muitos países, em prol do justo e efectivo desenvolvimento dos povos, naturalmente. Bem podemos citar a China (e outros ainda) como exemplos disto mesmo. Mas os casos a que principalmente me reporto não têm a ver com as necessidades de desenvolvimento das sociedades respectivas, mas com formas de poder pessoal que mais servem os líderes do que os cidadãos, em regimes ditos democráticos.
Os Estados Unidos, mais recentemente, e certos países da Europa integram esta paisagem.
Uma ilusão interrompida?
A não reeleição de Donald Trump nas eleições de 3 de Novembro parece terem posto cobro, para já, ao evoluir de um grande movimento transnacional que poria em causa o sistema político democrático europeu e apontaria vias de evolução futura que mais não são, na História Europeia, do que regressos grosseiros ao passado. Há exactamente um século (1920-30…) o chamado Velho Continente vivia um período entre duas guerras mortíferas, antecedida a segunda de movimentos políticos em tudo análogos aos que são hoje apontados como… o futuro da Europa!
Mas quem escondeu os manuais de História para não os dar a ler a certos dirigentes políticos europeus e americanos?
Trump sai de cena, para já, mas o trumpismo fica, dizem os analistas de todos os lados. Não deixa de ser inquietante!
O monopólio da verdade moral?
Dizia há dias o antigo Presidente americano Barack Obama que o voto evangélico e latino em Trump foi principalmente motivado pelas posições anti-aborto e contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Os conservadores católicos americanos, muitos dos quais votaram em Trump, disseram que os padres não deveriam dar a comunhão a Biden por liderar uma força política defensora de posições anti-católicas.
Não vou debater este ponto que é do foro exclusivamente doutrinário e eclesiástico. O meu foco é diverso, outro.
O que pretendo dizer é que uma certa verdade moral, ou o pretenso monopólio de tal verdade, por determinada força política, não nos deveria empurrar, por falta de alternativa, para escolhas eleitorais que no fim se revelam tremendamente lesivas da sociedade em geral. O legado de fracturas e divisões, hoje, na sociedade americana é o exemplo disso!
A questão do aborto é capital, sem dúvida. A defesa da vida não é negociável. Mas, num outro plano embora, como são punidos moralmente, “religiosamente”, um líder ou uma força política que avalizam um tipo de economia que promove deliberadamente a desigualdade? E que manipula as consciências, identificando as leis do mercado com a vontade divina, numa confusão deliberada, de modo a anestesiar as críticas contra um sistema que funciona a favor de poucos? E fecha os olhos ao racismo? E promove divisões, exacerbando conflitos entre pessoas e entre grupos?
O muro inacabado…
O muro inacabado na fronteira do México. A cruzada contra os imigrantes ilegais, com a clamorosa situação da separação das crianças de seus pais. O preconceito anti-muçulmano. O racismo sistemático, apesar das recusas frouxas em aceitá-lo da parte dos principais protagonistas.
E depois… ou antes de mais… o económico! O grande milagre em que se baixa os impostos às empresas, para benefício prioritário dos grandes grupos económicos!
Sem tomar naturalmente partido no debate político interno americano (não lhe competia fazê-lo) o Papa Francisco não deixou de enviar sinais inequívocos aos bispos e aos católicos americanos nos momentos particularmente densos que a América viveu e ainda está a viver.
A recente elevação à dignidade cardinalícia do arcebispo de Washington, monsenhor Wilton Gregory, um afro-americano, não está certamente desligada do contexto social e político deste momento, onde a questão racial esteve no topo de agenda dos candidatos, graças às manifestações generalizadas contra a brutalidade policial. E graças à manifesta protecção, pelo ainda Presidente, de gente adepta da superioridade branca, com todas as consequências que tal “ideologia” híper-reaccionária tem num contexto multiétnico e multicultural como o da sociedade americana.
Vamos sonhar!
No seu novo livro “Let Us Dream”, Francisco faz referência expressa e critica os “líderes populistas” que fomentam “ressentimento e ódio” em comícios.
Não citando nenhum, compara-os aos ditadores dos anos 1930. O Pontífice debruça-se também sobre a morte de George Floyd chamando-a de “é uma violação grosseira da dignidade humana”, diz compreender a reacção que teve foi sua consequência.
Francisco culpa os media em geral por reclamações sobre as restrições do Covid, dizendo que eles “usaram esta crise para persuadir as pessoas de que os estrangeiros são os culpados”.
Referindo-se às pessoas que dizem que “o coronavírus é pouco mais do que um pequeno surto de gripe”, diz que “há políticos que vendem essas narrativas para seu próprio benefício”.
Francisco discordou de Trump numa série de questões, incluindo mudanças climáticas, Cuba e imigração.
O Papa teceu criticas à decisão do Presidente de se retirar do Acordo de Paris, para limitar o aquecimento global, e a política de seu Governo que separa as famílias de migrantes que entram nos Estados Unidos.
Em entrevista à REUTERS, em 2018, Francisco disse que estava triste com a decisão de Trump de reverter um acordo que o Vaticano ajudou a negociar durante o anterior Governo Obama para incentivar o comércio e as viagens com Cuba.
O futuro…
O Papa Francisco ofereceu as suas “bênçãos e felicitações” ao Presidente eleito, Joe Biden, num telefonema, buscando reconstruir o relacionamento com Washington após quatro anos de relações às vezes contenciosas com o Presidente Donald Trump.
A conversa com Biden, que se tornará apenas o segundo Presidente católico romano na história dos Estados Unidos quando entrar na Casa Branca em 20 de Janeiro, foi anunciada pela equipa da transição.
Trump não reconheceu a derrota e prossegue acções judiciais contra as eleições, todas sem sucesso!
Carlos Frota